O mar ainda é muito, mas já se consegue atravessar

Os elos entre músicos de Portugal e do Brasil já não são raros ou capricho de editoras. Há ligações a criar raízes.

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Mallu Magalhães num concerto da Banda do Mar ENRIC VIVES-RUBIO

Há quatro décadas, Chico Buarque cantava: "Sei que há léguas a nos separar/ Tanto mar, tanto mar/ Sei, também, quanto é preciso, pá/ Navegar, navegar." O mote era o 25 de Abril (ao Brasil a democracia chegaria dez anos mais tarde) mas podia aplicar-se ao intercâmbio Portugal-Brasil em termos musicais. A maré que vinha e trazia, nada levava. Mas foi-se navegando. Nos anos 80, o pioneirismo coube a Eugénia Melo e Castro e Sérgio Godinho. A primeira, cantando em português de Portugal, gravou com um lote invejável de músicos brasileiros (Tom Jobim, Wagner Tiso, Ney, Caetano, Chico, Milton, Gal, Simone), o segundo gravou com Ivan Lins e compôs com Milton, Novelli e João Bosco em 1983, "voltando" ao Brasil em 2003, em Irmão do Meio, em duetos com Caetano, Gabriel o Pensador, Zeca Baleiro e Milton Nascimento. E no Brasil era editado o disco colectivo A Música em Pessoa (1985), a que se seguiria Mensagem (já em 1997).

O fim dos anos 90 foi decisivo. Na Expo’98 portugueses e brasileiros partilharam palcos. Chico César com Né Ladeiras, Caetano Veloso com Pedro Abrunhosa, Mísia com Maria Bethânia. Na RTP, no programa Atlântico (produzido por Eugénia Melo e Castro e Nelson Motta) houve mais "duetos": Fernanda Abreu e os Cool Hipnoise, Leila Pinheiro e Rui Veloso, Herbert Vianna e Rui Reininho, Ed Motta e os Blackout, Simone e Dulce Pontes, Elba Ramalho e Vitorino, Edu Lobo e Sérgio Godinho, Gal Costa e Luís Represas. Ela viria a gravar num disco dele, em 2007, tal como Pedro Abrunhosa gravaria em 2003 duetos com Lenine, Sandra de Sá e Zélia Duncan.

Os anos 2000 solidificam este intercâmbio. Os Clã e Arnaldo Antunes iniciam uma colaboração regular, Maria João e Mário Laginha gravam com Gilberto Gil e Lenine em Chorinho Feliz (2000), Pedro Jóia integra a banda de Ney Matogrosso em Canto em Qualquer Canto (2006) e vários músicos brasileiros instalam residência (principal ou secundária) em Portugal: Ivan Lins, Alceu Valença, Pierre Aderne, Marcelo Camelo, Mallu Magalhães, Luanda Cozzeti, Norton Daiello.

E se começa a haver músicos brasileiros a compor para portugueses (como Mallu Magalhães para Raquel Tavares ou Rodrigo Maranhão para António Zambujo), o português Tiago Torres da Silva escreve para muitos brasileiros: Jussara Silveira, Olivia Byington, Maria Bethânia, Alcione, Ney Matogrosso, Elba Ramalho, Chico César, Zélia Duncan e Daniela Mercury, entre outros.

Na área do fado, a par do boom gerado por António Zambujo (que lançou um disco só com canções de Chico Buarque) e Carminho (que já antes dera concertos com Milton, gravando com ele, Chico e Nana Caymmi), houve novas colaborações: Mísia com Maria Bethânia e Adriana Calcanhotto, Mariza com Jaques Morelenbaum, Cuca Roseta com Nelson Motta, Katia Guerreiro com Ney e Martinho da Vila (que em Lusofonia fez pontes com África).

E, fora do fado, Teresa Salgueiro grava com Caetano Veloso e Zeca Baleiro, os Danças Ocultas com Dom La Nena, e Susana Travassos faz um disco com Chico Saraiva e Paulo Belinatti. E é fundada em 2014, em Portugal, a luso-brasileira Banda do Mar, com Marcelo Camelo, Mallu Magalhães e Fred Ferreira.

Não navegámos mal, até aqui.

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