Fillon e a máquina de lavar
1. François Fillon será o candidato da direita às presidenciais do próximo mês de Abril. A sua inesperada vitória na primeira volta das primárias confirmou-se plenamente na segunda. Alain Juppé, o candidato moderado, não conseguiu mobilizar a direita, numa altura em que tudo o que é moderado em política parece ter os dias contados. São inúmeros os rótulos que se colam a este católico discreto, cultor dos velhos valores da França profunda, com um programa económico que não podia ser mais distante da tradição francesa e uma agenda de valores capaz de enraivecer a intelectualidade parisiense.
Católico num país que fez da laicidade uma característica identitária defende os valores da família tradicional, com a correspondente reserva face à liberalização dos costumes, da legalização do aborto aos casamentos gay, mas não faz disso um programa político. Já disse que não tocará na lei que Simone Veil, ministra da Saúde de um governo de direita, fez aprovar em 1975. Um país que não se importa que um Presidente tenha duas famílias e que outro troque a mulher que entrou com ele no Eliseu por uma conhecida actriz francesa que visitava de mota, não garante vida longa a uma versão “ultraconservadora” em matéria de costumes. Na França, é sempre prudente passar os rótulos políticos pela máquina de lavar da cultura política francesa, para não nos enganarmos quanto ao seu significado. O rótulo de thatcherismo exige a mesma prudência. Fillon admira a revolução liberal-conservadora de Thatcher mas sabe que ela não é compatível com um país que cultiva o Estado, da esquerda à direita, e a palavra “liberal” (mesmo sem neo) era até há pouco tempo um insulto. Quer reduzir o peso do Estado na economia, porque considera que é um limite ao aumento da competitividade e impede há décadas o equilíbrio das contas públicas. Propõe a saída de 500 mil funcionários em cinco anos, num total de 5 milhões e 400 mil. Passar o tempo de trabalho da Função Pública de 35 para 39 horas (pagas 37) também não chega a ser uma medida extrema. Como não o é a passagem da idade da reforma de 62 para 65. Isso acontece já na maioria dos países europeus. Discípulo e admirador de Philippe Séguin, uma figura tutelar da direita francesa nos anos 1980 e 90 (morreu em 2010, quando era presidente do Tribunal de Contas), não é com certeza indiferente ao seu combate contra um “Munique social”, referindo-se à camada mais pobre da população. A reforma das leis laborais não anda muito longe do que outros governos já tentaram fazer, incluindo o actual: tornar os despedimentos mais fáceis e, ao mesmo tempo, reduzir progressivamente o subsídio de desemprego para incentivar o regresso ao trabalho. Ou seja, Thatcher sim, mas em versão francesa.
2. Há uma estranha ironia na escolha de Fillon e na candidatura de Emmanuel Macron. Ambos têm o modelo britânico como inspiração. Fillon admira o mérito de uma “revolução” encarnada pela primeira-ministra britânica e por Ronald Reagan há 35 anos. Macron foi a uma escola profissional numa região de grande desemprego para anunciar a sua versão da recuperação económica da França: a ideia muito “terceira-via” de que só com educação e formação as economias ricas da Europa conseguiriam enfrentar mais à vontade a globalização. Está apenas atrasado 16 anos. Fillon optou por dizer algumas coisas que chocam de frente com a cultura política do seu país. Acha que os franceses já estão preparados para as ouvir. É um exercício de risco, que o obrigará a adoçar o seu programa, quando, numa provável segunda volta, precisar dos votos do centro-esquerda para derrotar Marine Le Pen. A sua posição controversa sobre o Islão não se afasta muito, em termos práticos, da resposta de Hollande aos atentados terroristas de Paris e de Nice, quer no que diz respeito à retirada da nacionalidade a quem saia para ir lutar com o Estado Islâmico, quer na “guerra ao terror” que o Presidente prometeu. Fillon fala no “totalitarismo islâmico”, também muito “neocon”.
3. Resta uma questão fundamental de que a campanha das primárias não falou o suficiente: a Europa. A França é um dos pilares insubstituíveis da integração europeia. Fillon tem um historial nem sempre “exemplar” em matéria de compromisso europeu. Esteve ao lado de Philippe Séguin na rejeição do Tratado de Masstricht (1992) no referendo que Mitterrand ganhou por uma unha negra. Não é um euro-entusiasta, embora não haja no seu programa nada que ponha o euro e a Europa em causa – uma distinção fundamental face a Le Pen. Prefere uma Europa dirigida pelos governos e não pelas instituições europeias. Mas também já não é o único. Apresenta-se como gaullista. De Gaulle defendia uma Europa das Pátrias, do Atlântico aos Urais, em sentido contrário da Europa transatlântica. Já lá vão muitos anos. Por mais gaullista que seja, Fillon adaptará as suas ideias às circunstâncias, como o fizeram outros presidentes antes dele, que começaram por se distanciar de Berlim mas rapidamente perceberam que o melhor que podiam fazer era abraçar a Alemanha em vez de hostilizá-la. O maior problema está na forma como Fillon encara as ameaças à segurança da Europa. E isso basta para preocupar Merkel e mais alguns parceiros europeus. Fillon aponta o Estado Islâmico como o combate prioritário, para o qual a Rússia é fundamental. Dá-se bem com Putin, que foi primeiro-ministro (no intervalo Medvedev) enquanto ele estava em Matignon. A eleição de Trump dá-lhe uma ajuda. Em Berlim teme-se sobretudo a sua “russofilia”. Mas, como disse Stefani Weiss da Fundação Bertelsmann à AFP, “qualquer Presidente francês que não se chame Marine Le Pen é uma boa notícia para o governo alemão”.