Alterações climáticas: Cientistas portugueses saltam para as páginas de BD

Livro já está disponível e é gratuito. Objectivo é alertar para as consequências das alterações climáticas ao nível das autarquias. E assim cientistas como o físico Filipe Duarte Santos e a socióloga Luísa Schmidt tornaram-se personagens de banda desenhada.

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O biólogo Gil Penha-Lopes, um dos cientistas que saltaram para o livro de BD

Um homem, com gotas de suor na cara, olha para o horizonte de uma planície. A legenda informa: “Entre 2004 e 2005, a precipitação em Portugal Continental foi muito inferior ao habitual.” Na página seguinte, um autarca fala com uma equipa de reportagem da televisão sobre a poupança de água mas, ainda assim, a piscina desse município teve de encerrar em pleno Verão. Os incêndios aumentaram. E tudo isto representou um gasto para o Estado de 286 milhões de euros.

Se uma parte desta história que está no livro de banda desenhada Reportagem Especial – Adaptação às Alterações Climáticas em Portugal é inventada, as situações descritas aconteceram mesmo e personagens como o físico Filipe Duarte Santos são reais. Lançado na segunda-feira na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), o livro é também o culminar do projecto ClimAdaPT.Local, que, depois de um ano e meio de duração, está agora a chegar ao fim. E coincide com Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas, a decorrer entre 7 e 18 de Novembro em Marraquexe (Marrocos). Nesta cimeira do clima espera-se que sejam definidas as regras do Acordo de Paris (de 2015), como as metas de redução de gases com efeito de estufa, as estratégias nacionais até 2050 e o financiamento para os países em desenvolvimento no combate às alterações climáticas.

Disponível no site do projecto de forma gratuita, a banda desenhada aborda algumas consequências das alterações climáticas já verificadas em Portugal. “Poucas pessoas em Portugal têm noção do impacto das alterações a nível local”, diz-nos Bruno Pinto, biólogo e comunicador de ciência que aceitou o desafio do projecto ClimAdaPT.Local para escrever o argumento de uma banda desenhada sobre alterações do clima em Portugal.

Nem este formato nem o tema eram uma novidade para Bruno Pinto. Em 2015, já tinha publicado Portugal 2055 – BD sobre as Alterações Climáticas em Portugal. Tanto num livro como noutro, estão lá os fogos florestais, a erosão costeira, as ondas de calor, os impactos na saúde humana, no turismo ou na agricultura. Agora, Bruno Pinto juntou-se a Penim Loureiro (arquitecto e ilustrador), que fez os desenhos, e Quico Nogueira (engenheiro civil), que lhes deu cor.

O que há de novo em Reportagem Especial – Adaptação às Alterações Climáticas em Portugal? Esta BD contempla apenas o território português, centrando-se mais ao nível autárquico. “Há muita informação sobre as alterações climáticas, mas é muito genérica. Falamos muito de alterações a acontecer em zonas polares, mas raramente falamos de Portugal”, exemplifica Bruno Pinto. Como biólogo, alerta para o facto de Portugal ser mais vulnerável às ondas de calor do que a Dinamarca ou a Inglaterra e que é preciso ter consciência disso.

Um dos problemas é também a comunicação do impacto das alterações climáticas a um público mais alargado. “Temos documentos muito técnicos e pouco acessíveis”, salienta Bruno Pinto. “Poucas pessoas em Portugal têm noção do impacto das alterações climáticas e não se tomam decisões.”

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Nos três meses em que desenvolveu o guião, Bruno Pinto entrevistou pessoas que estudam as alterações climáticas ou que já as sentiram na pele. O resultado está em sete capítulos, que narram uma “reportagem televisiva que não existiu realmente, mas que esteve para existir”, diz o argumentista, em comunicado. Como tal, uma das personagens principais é mesmo inspirada em Carla Castelo, jornalista da SIC. Sofia é a jornalista da história de BD, que anda pelo país em reportagem para ver os efeitos das alterações climáticas e o que está a ser feito para nos adaptarmos a elas.

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Exemplo de alterações climáticas é a tempestade de 2009, que atingiu a região Oeste do país. É aqui que entra uma personagem local a ser entrevistada por Sofia – João Palma, agricultor da região de Torres Vedras, com dez hectares de estufas. Numa noite de ventos muito fortes, tudo ficou destruído, o que mostra a necessidade de medidas locais de adaptação às alterações do clima. “Nessa altura, as companhias de seguro não faziam seguros a estufas. Praticamente ninguém tinha”, lamenta o agricultor da história. “Mas houve um grande apoio do Governo, que indemnizou até 75% dos prejuízos”, lê-se.

“Os agricultores tinham decidido aligeirar as estruturas, em vez de as fazerem com materiais acrílicos faziam-nas com plásticos”, acrescenta, por sua vez, Bruno Pinto.

Nas mãos dos municípios

Há três anos, de 23 de Junho a 14 de Julho, os termómetros registaram temperaturas muito elevadas em Portugal. Nesse período, houve mais 1684 mortes do que o habitual, a maioria idosos, um dos grupos de risco. Será que esta onda de calor está ligada às alterações climáticas? “É quase certo que sim”, responde à jornalista Sofia um dos cientistas de carne e osso. Gil Penha-Lopes, que aparece no livro, é biólogo e investigador na área das alterações climáticas e da sustentabilidade da FCUL e, na realidade, foi o coordenador executivo do ClimAdaPT.Local.

Ao todo, este projecto, que contou com cerca de 1,5 milhões de euros, englobou 26 municípios de vários pontos do país, escolhidos pela equipa do ClimAdaPT.Local segundo três critérios de selecção (incluir municípios da áreas metropolitanas do Porto e de Lisboa, representar uma diversidade de impactos das alterações climáticas, como o aumento da precipitação e das temperaturas, e uma diversidade socioeconómica). Teriam ainda de participar técnicos dos municípios na área do planeamento do território e do ambiente.

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“O grande objectivo era capacitar os municípios para as adaptações às alterações climáticas”, frisa Gil Penha-Lopes. Cada município teria de elaborar as suas Estratégias Municipais de Adaptação às Alterações Climáticas. A ideia é passá-las do papel para a prática. Para tal, houve a formação de técnicos municipais, como de resto se ilustra na BD. A socióloga Luísa Schmidt, outro dos investigadores reais do ClimAdaPT.Local que saltaram para as páginas de banda desenhada, foi a muitas localidades fazer workshops para os técnicos municipais sobre os problemas identificados a nível local.

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“Os municípios do litoral têm problemas muito específicos, ligados sobretudo à erosão costeira (recuo da linha de costa), enquanto os do interior já sofrem com a escassez dos recursos hídricos e testemunham grandes alterações nos padrões climáticos anuais que afectam os sectores da agricultura e da floresta”, especifica Luísa Schmidt, do Instituto de Ciências Sociais de Lisboa. “Por outro lado, cidades como Lisboa e Porto apresentam problemas associados à mobilidade, à saúde pública, sofrendo também de impermeabilização do solo, que potencia fenómenos como inundações.”

 Agora a bola passou para as mãos dos municípios. Já em Dezembro, a equipa espera que a maioria dos 26 municípios tenha as suas estratégias aprovadas. “Estamos à espera de que pelo menos 20 estratégias sejam aprovadas”, avança Gil Penha-Lopes. Nessa altura, será também criada a Rede de Municípios de Adaptação Local às Alterações Climáticas.

Por agora, apenas Loulé tem aprovada a sua estratégia de adaptação, refere Gil Penha-Lopes. Entre as 28 medidas previstas para Loulé está a reabilitação de ribeiras, a ampliação das hortas urbanas, o uso eficiente da água ou a criação do Observatório dos Recursos do Mar e do Observatório do Ambiente. Mas não há financiamento específico para aplicar esta estratégia – embora esteja a ser feito um “esforço para identificação de captação de fundos comunitários”, diz-nos o presidente da Câmara Municipal de Loulé, Vítor Aleixo.

Filipe Duarte Santos, da FCUL e que é o coordenador geral do ClimAdaPT.Local, destaca precisamente a estratégia de Loulé. O que é mais importante nela? “Tem medidas concretas de adaptação”, responde.

Com larga responsabilidade no estudo das mudanças do clima, Filipe Duarte Santos já tinha sido o coordenador do grande estudo Alterações Climáticas em Portugal: Cenários, Impactos e Medidas de Adaptação (SIAM, na sigla em inglês). Publicado em 2002, mostrou que Portugal está na rota das alterações climáticas causadas pela acção humana. Depois do SIAM, o projecto com as 26 autarquias é “um primeiro passo”, diz agora Filipe Duarte Santos, para agir.

No cenário mais moderado traçado neste último projecto, em todos os municípios haverá uma subida da temperatura média anual do ar de um a dois graus Celsius até 2100, explica Filipe Duarte Santos. No cenário extremo, a subida será entre três graus, nos Açores e na Madeira, e seis graus em Évora.

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Em relação a vulnerabilidades trazidas pelas alterações do clima, Filipe Duarte Santos lembra fenómenos que já aconteceram no país – desde cheias na cidade de Lisboa e no centro do país, fogos em Viana do Castelo, Tondela ou Tomar até secas em Ferreira do Alentejo e Odemira – e que podem repetir-se.

Mas, afinal, o que pensam os próprios cientistas das suas personagens desenhadas? “Achei muito útil esta forma de chegar a mais públicos-alvo. Quanto à minha personagem, os meus colegas acham que corresponde…”, nota Luísa Schmidt. E ri-se. Já a primeira reacção de Filipe Duarte Santos à pergunta é uma enorme gargalhada. “Sinto-me favorecido com o desenho que fizeram de mim. Sou facilmente reconhecível…”

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