O suicídio público de François Hollande
Hollande não se suicida apenas a si próprio. Deixa a esquerda socialista transformada num campo de ruínas e desfere um golpe fatal no centro-esquerda europeu.
1. A Economist chama-lhe o senhor 4 por cento. É verdade. Uma sondagem recente indica que apenas 4 por cento dos franceses acham que ele é um bom Presidente. A sondagem foi feita depois do suicídio público que se seguiu à publicação do livro de dois jornalistas do Monde que o acompanharam no Eliseu desde o início do mandato e aos quais Hollande conta coisas verdadeiramente impensáveis da parte de um Presidente. O livro, “Un Président ne devrait pas dire ça…”, acabou com qualquer hipótese de candidatar-se a um novo mandato. Hollande pensava que seria publicado depois de sair do Eliseu. Mesmo assim, as suas confissões vão muito para além do que é tolerável num Presidente. O seu efeito imediato foi abrir as comportas do mal-estar que já se manifestava no governo e no PSF com o evidente fracasso do seu mandato. O próprio livro é um caso estranho de ingenuidade ou indiferença. Ou talvez a prova de que François Hollande não estava preparado para entrar no Palácio habitado pelos Presidentes da V República, cujos poderes deixam o seu homólogo americano a milhas de distância (pelo menos, em matéria de política interna). Até à sua publicação, Hollande estava à espera de um abaixo-assinado dos deputados socialistas e outras figuras gradas a pedir-lhe que se apresentasse às “primárias” de Janeiro. Está obviamente congelado. O tom com que fala do seu primeiro-ministro ou do presidente da Assembleia Nacional matam qualquer dever de lealdade. Insulta os juízes e magistrados, acusando-os de “cobardia”. Acusa os jogadores da selecção nacional de exercitarem pouco o cérebro. Reconhece que deu ordem aos serviços secretos para matarem quatro pessoas. Não é que não haja decisões deste género em democracia, desde que fiquem mesmo secretas. O livro tem 600 páginas e inclui o episódio relatado no Expresso sobre o acordo secreto que fez com Barroso e com Juncker para “maquilhar” as contas francesas, afastando um processo por défice excessivo. Bem dizia o actual presidente da Comissão que “a França é a França”, para justificar uma condescendência de que os outros países na mesma situação não auferem.
2. Hollande não se suicida apenas a si próprio. Deixa a esquerda socialista transformada num campo de ruínas e desfere um golpe fatal no centro-esquerda europeu que era suposto liderar. A preocupação dos socialistas já se limita ao controlo dos estragos. Manuel Valls avisou que o seu partido pode “passar à História”. O cenário de 2002, quando o candidato do PS, o então primeiro-ministro Lionel Jospin, não conseguiu passar à segunda volta, perdendo para Chirac e para o pai Le Pen, é sistematicamente invocado. Chirac ganhou esmagadoramente na segunda volta. Desta vez, Marine, que excomungou o pai, preparou-se para ser a líder de um partido do sistema, arredondando as arestas mais escabrosas e reduzindo alguns decibéis à retórica racista contra os imigrantes, reservando-a aos de origem islâmica. Adoptou uma pose mais tranquila, quase “gaulliana”, dizem alguns analistas. Conseguiu que todas as sondagens lhe garantam um lugar na segunda volta, deixando em aberto apenas quem será o seu adversário. Só isso ajuda a medir a crise política francesa. Mas mantém intacto o seu combate contra a globalização, contra a Europa, contra o euro e, de um modo geral, a favor dos franceses “de souche” e da soberania nacional. Faz parte da vaga de amigos de Trump e de Putin que não para de crescer em muitos países europeus.
3. François Hollande nunca pertenceu a nenhum governo, apenas liderou o PS durante muitos anos, porque conseguiu tirar partido da guerra entre os “elefantes” socialistas. Foi eleito em 2012 porque a França queria qualquer coisa “menos Sarkozy”. Apresentou um programa de esquerda, tal como a França a entende (mais radical do que os seus parceiros europeus). Levou meio ano a perceber que a Europa não lhe permitia tantas liberalidades. Nomeou Manuel Valls, o rosto da direita do PS, para tentar algumas reformas necessárias ao cumprimento das regras de Bruxelas e animar a economia. Face a este esforço, Merkel ofereceu-lhe uma trégua. As reformas que o seu governo levou a cabo com grande custo, ficaram a meio caminho, apesar do seu ainda mais liberal ministro da Economia, Emmanuel Macron, que se demitiu em Agosto para tentar uma chance nas “primárias” de Janeiro. Manuel Valls sofreu o desgaste da sua proximidade a Hollande. O livro libertou-o dessa lealdade e admite a possibilidade de se apresentar às “primárias”. As sondagens dão-lhe 25 por cento de apoio, até agora o maior score que um socialista consegue ter nas sondagens. À esquerda da esquerda, Jean-Luc Mélenchon vai apresentar-se com um programa que, tirando os imigrantes, não é muito diferente do de Marine. Consegue ter mais apoio do que o actual Presidente (12 a 15 por cento). No Eliseu, o ambiente é sombrio, com muita gente a sair para outros empregos. Hollande teima em não dar a mínima indicação do que tenciona fazer. A agenda política do Governo está esgotada, porque deveria começar agora a campanha. “Sou um fantasma neste palácio”, disse o Presidente no seu livro de confissões.
4. Entretanto, muitos eleitores franceses parecem querer apenas um Presidente “decente”, seja qual for o seu programa. Votantes da esquerda prometem registar-se para participar nas primárias da direita a favor de Juppé. O antigo primeiro-ministro e maire de Bordéus já ajustou as suas contas com a Justiça, depois de ter sido condenado com pena suspensa por financiamentos indevidos do partido, quando trabalhava com Chirac na Câmara de Paris. As sondagens colocam-no no topo das preferências dos eleitores. Tem uma difícil barreira a vencer, que se chama Nicolas Sarkozy, que enfrentará nas “primárias” de Novembro. É o preferido das sondagens, mas o seu rival é o preferido das bases do partido, que adoram a sua linguagem radical, as suas sete vidas, o seu inegável carisma. Sarkozy insiste na mesma estratégia que lhe deu a vitória em 2007: roubar as bandeiras da Frente Nacional. Encontra pela frente uma Marine revista e corrigida para caber na República, reduzindo-lhe a margem de manobra.
5. No centro do mal-estar francês está um problema de identidade, que parece ir além das meras questões económicas. Macron, quando lançou o seu movimento “Em Marcha”, foi visitar em Orleães o túmulo de Joana d’Arc, a heroína francesa que costumava ser imagem de marca da Frente Nacional. Com a economia a patinar, nada consegue desviar os franceses da sua malaise identitária e europeia. A Europa sem a França e com o Brexit vai mergulhando lentamente na sua própria crise de identidade. A Comissão Juncker está em dissolução acelerada. Merkel enfrenta eleições difíceis e já deixou de contar com Hollande. Se Trump ganhar, os “salvadores da Pátria” que pululam por aí sentir-se-ão de vento-em-popa. Podem provocar uma devastação política igualmente fatal. A Europa também corre o risco de se suicidar.