Anton Kannemeyer: Usar a BD para desenterrar as coisas feias da história

Depois do livro Papá em África, a exposição. É um dos convidados do AmadoraBD, com pequenas histórias e imagens em grande formato que deixam o espectador a pensar sobre a memória, o racismo, a história política do continente africano e um livro de Hergé.

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O sul-africano Anton Kannemeyer é um dos convidados do Festival de Banda Desenhada da Amadora Rui Gaudêncio

Foi uma frase que ficou na cabeça de Anton Kannemeyer (1967, Cidade do Cabo). Depois de visitar uma das suas exposições, um moçambicano confessou-lhe: “Não gosto do seu trabalho. Quando olho para as cores que usa, para aquilo que desenha, estou a ver a África do Sul e detesto essa sensação”. Desde 1992 que o artista e autor convidado do Amadora BD escuta desabafos semelhantes, mas as palavras daquele homem tiveram uma ressonância especial: implicavam a história de um país e o poder de perturbar que certas imagens conservam. Sim, Kannemeyer é um artista difícil, polémico, pois faz pensar, com a banda desenhada. Quem visitar Papá em África, a sua exposição no festival vai poder confrontar-se com personagens que são vítimas e agressores, com um mundo complexo, violento e humano, destituído de maniqueísmos. Reparem no retrato que fez do seu pai, na curta BD auto-biográfica publicada em O Meu Nelson Mandela e Outros Contos (livro com edição da MMMNNNRRRG, que será lançado na Amadora): o homem terrível com as mulheres e as crianças era, também, crítico literário e professor universitário, amigo de escritores anti-apartheid. Personagem feita de múltiplas facetas, não um estereótipo.

Foi esta inteligência que, no início dos anos 90, guiou Anton Kannemeyer no seu ajuste de contas com a cultura africânder e a censura patriarcal do regime racista da África do Sul. “Quando comecei com o Conrad Botes a fazer exposições e a publicar a [revista de BD] Bittercomix, queríamos lidar com a identidade africânder. Erámos muito críticos do que ela representava e fizemos-lhe um ataque iconoclasta. Depois de anos de censura, pudemos olhar de frente para um tempo que nos tinha marcado”, recorda. O desenho de cenas sexualmente explícitas e violentas representou o primeiro passo, libertador – “Tínhamos sido criados numa cultura protestante, nacionalista e cristã, sufocante. Lembro-me de ver o The Shinning [filme de Stanley Kubrick] na televisão com cenas desfocadas. Não sei como faziam, mas era assim”, sublinha. “No fim dos anos 80, eu não sabia quem era Nelson Mandela. Ainda há pessoas, sobretudo jovens, que não acreditam. A censura do regime era muito forte, um veículo eficiente, muito poderoso”.

Entre a narrativa e a autonomia das imagens

Nestas circunstâncias, o surgimento nos anos 90, em plena Cidade da Cabo, de uma revista como a Bittercomix e de um artista como Anton Kannemeyer tem algo de surpreendente. “Concordo (risos). Por acaso eu e o meu tivemos irmão acesso a alguns números da Pilote e da Métal Hurlant [revistas francesas de banda desenhada]. E cheguei a colecionar a Heavy-Metal [revista americana], mas foi tudo muito secreto, não havia qualquer cultura de BD no país”. Então, o que aconteceu? “As nossas primeiras bandas desenhadas eram a preto-e-branco, mas ao fim de algum tempo começámos a fazer grandes serigrafias a cores para exposições. Exibíamos as imagens e vendíamos os livros e a dada altura, as galerias começaram a interessar-se pelas serigrafias”.

O percurso de Anton Kannemeyer fez-se entre o mundo das artes plásticas e a banda desenhada “underground”, entre as galerias de arte e as bancas dos festivais internacionais de BD. “A minha formação não foi a de um autor de banda desenhada. Estudei artes gráficas, mas também partilhei aulas com estudantes de arte. Estudávamos pintura, escultura contemporânea, história e filosofia de arte. Houve da parte dos nossos professores a intenção de formar estudantes que pudessem pensar de modo mais crítico e analítico o que faziam com a linguagem e as imagens”. Na exposição e nos livros, estão bandas desenhadas e imagens autónomas, que o artista considera indissociáveis, partes do mesmo todo. “Umas alimentam as outras. Apenas com as pinturas sinto-me perdido, preciso de volta às narrativas. E da narrativa vou levando coisas para as telas, para um trabalho mais conceptual. Não creio que se possa falar de uma separação. Considero que as pinturas têm até uma dimensão narrativa. Olhamos para uma imagem e podemos imaginar a seguinte ou a anterior”.

Provenientes de vinhetas ou da série Alphabet of Democracy, as pinturas são movidas por uma verve satírica que insiste em desenterrar o passado, deixando à solta, sem revanchismo, fantasmas que revelam as fragilidades, os falhanços irreversíveis dos homens. Sem pudor ou medo: o paternalismo britânico é atingido em 20 Year of Democracy, a masculinidade do homem branco é ridicularizada em Sometimes I miss the old days when white men were ashamed to cry in public, a corrupção política é o grande assunto de José Eduardo dos Santos / Jonas Savimbi. Anton Kannemeyer desafia-se, implica-se nos temas, que considera polémicos e desconfortáveis, indiferente qualquer protesto que lhe pareça politicamente correcto. “Gosto de desenterrar as porcarias que deixámos para trás, as coias feias, mesmo reconhecendo que há sempre o risco perpetuar os estereótipos. Quando comecei a desenhar, usava muito a imagem do golliwog [personagem negra de contos infantis do século XIX] porque que dessa forma conseguia chegar ao coração do tema, que era o racismo. Mas nos últimos três anos comecei a usá-lo menos, porque o meu comentário já se estava a transformar num cliché, a ser apropriado por outras leituras. E essa era uma armadilha em que não queria cair”. A cautela do autor não é obsta contudo ao desconforto provocada por certas reacções. “Em países como França, Portugal ou Inglaterra o modo como trabalho estes estereótipos é comentado, questionado, discutido. Já nos Estados Unidos, onde domina o politicamente correcto, ficam aflitos, quando vêem estas imagens, fogem. Já fui criticado publicamente por um escritora, que achava que não fazia sentido mostrar o golliwog. Foi uma discussão acesa, muita tensa, e infelizmente não chegámos a nenhuma conclusão”.

Inocente e culpado

Embora consciente das ciladas dos clichés, Kannemeyer continuará a trazer a superfícies todos os esqueletos e demónios, sejam os da sua infância, da sua juventude ou da história colectiva da África do Sul, conjugando os factos históricos com uma dimensão autobiográfica, onde não faltam a sátira e o drama. Regresse-se a O Meu Nelson Mandela. Numa das pranchas, vemos o jovem Anton, humilhado, a apanhar do chão o bilhete que o revisor alemão lhe atirou à cara depois de descobrir a sua nacionalidade sul-africana. É difícil o leitor não sentir alguma compaixão pela personagem. Que culpa carrega ele, a não ser a de ter nascido e crescido sob o regime de apartheid, de ser africânder? “Uma das coisas mais interessantes na banda desenhada é que se queres questionar a cultura, o sistema político sob o qual viveste, deves começar por dirigir as questões a ti mesmo, de outra forma estarás a ser moralista”, diz o artista. “O melhor a fazer é implicares-te. Só assim, a tornares a tua história credível. Foi muito difícil escrever esta situação. Se eu era inocente? Claro que era, mas, ao mesmo tempo, não era”.

É este reconhecimento ambíguo, não definitivo, que explica a presença de imagens como a do homem negro que corta a relva de uma casa sul-africano ou a o polémico Peekaboo!. O racismo e a estupidez dos homens não desapareceu depois do Apartheid. “A África do Sul melhorou muito, as pessoas relacionam-se de outra forma. Mas, por outro lado, temos um ministro de desporto que é capaz de dizer em público que não vai ver jogar um jogador de cricket, apenas porque é branco. São frase incompreensíveis, de uma irresponsabilidade total e ninguém reage”. Anton Kannemeyer ainda vai ter muito trabalho pela frente.

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