A solidão de Noiserv agora ouve-se ao piano
O Noiserv que nos habituámos a ver como um homem artilhado com uma orquestra pronta a disparar fez uma pausa. 00.00.00.00 segue um caminho novo: construído ao piano, maioritariamente instrumental e cantado em português.
David Santos, o homem que habita solitário o projecto Noiserv, gosta que os seus álbuns cheguem com o Outono. Por “achar que as coisas correm bem se as fizermos sempre da mesma forma”, porque pensa que, depois dos concertos de apresentação, fica com todo o ano seguinte para mostrar a nova música por quantos palcos o queiram receber e porque suspeita que as suas pequenas e frágeis canções destoam “da fúria em que toda a gente anda antes de começar o Verão”. Os discos de Noiserv têm mais que ver com o recomeço da normalidade, uma certa melancolia que se desprende das rotinas, um corte com a exuberância e uma época de recolhimento.
E talvez nunca antes esta sintonia sazonal se tenha feito sentir tanto quanto no novo 00.00.00.00, álbum construído ao piano, (pouco) cantado em português e de predominância instrumental. É uma espécie de suave revolução no universo do músico, habitualmente rodeado de uma parafernália de instrumentos mais ou menos convencionais, um adulto feito criança, entregue a um jogo de faz-de-conta, entrincheirado num mundo de legos musicais em que as canções se constroem peça sobre peça. Acontece que em Fevereiro, a jogar basquetebol, David partiu um pé e teve de ficar engessado durante 24 dias, com a mobilidade dificultada por viver numa zona antiga, feita de constantes subidas e descidas. Ainda tentou convencer-se de que era o momento ideal para se instalar no sofá e ver séries de enfiada, mas ao fim de quatro dias a sua inquietude já o tinha sentado diante do piano que tem em casa.
Sozinho com o piano, foi acumulando uma colecção de rascunhos de curta duração, 15 a 20 segundos, que tanto podiam ficar à espera que uma banda sonora os reclamasse mais tarde como exigir uma existência autónoma imediata. Aos poucos, David começou a perceber que adiar esta música equivaleria a uma fuga, a resguardar-se na sua dinâmica habitual de sobreposição de camadas de instrumentos. “Se restringir tudo a um só instrumento vai ser um desafio giro para a minha cabeça”, pensou. Ainda se atreveu a juntar a estas peças para piano algumas partes mais orquestradas, mas após um par de testes concluiu que “já ia para o mesmo sítio onde estavam as outras”. Se era para avançar com um disco de piano, Noiserv tinha antes de mais de desarmadilhar os seus vícios e desmontar as suas redes de segurança.
O que não é dizer pouco. Porque apesar de justapor várias pistas de piano, chegando a ter nove pianos a tocar em simultâneo, a verdade é que está muito longe dos 90 instrumentos que coincidiam em algumas das suas gravações passadas. Aí reside, na verdade, aquela que Noiserv considera a sua grande conquista enquanto compositor em 00.00.00.00: “Antes tinha de chegar aos tais 80 ou 90 instrumentos para sentir que a música não precisava de mais nada; aqui, nalgumas músicas consegui ter apenas um piano. Isto era impensável há quatro anos, fazer uma coisa simples e achar que era suficiente. E não me estou a forçar a sentir que é suficiente, sento-me mesmo a ouvir e penso que já está cheio assim. Foi uma conquista perceber que os meus ouvidos também ficam satisfeitos com coisas simples. Até aqui, quanto mais cheio melhor.”
A banda sonora
Dessa nova simplicidade nasce também o maior receio de Noiserv em relação a este disco. E é um receio que esbarra de frente na incerteza de que o público que apreciava a complexidade (uma soma de pequenas simplicidades, para sermos justos) de discos como Almost Visible Orchestra possa não o acompanhar nesta dieta extrema. Tanto assim que chegou a perguntar-se se faria sentido editar esta música enquanto Noiserv. Não estaria, afinal, a perverter o espírito que presidira até aqui ao seu caminho criativo? Estava entregue a um piano minimal e a escassos temas cantados e em português – caberia esta fornada criativa no mesmo conceito de homem-orquestra que, de repente, dispensava a orquestra? Mas Noiserv sempre foi definido por uma questão de auto-suficiência. E, de facto, não muda grande coisa: rodeado de botões, teclados, metalofones e quaisquer objectos que produzem o som certo para determina canção, ou sentado simplesmente ao piano, David continua a ser um só homem (com o charme de um homem só).
O universo sonoro de Noiserv também não abriu uma fenda e criou duas realidades desconexas. Se não custa ouvir no piano minimalista das oito faixas a sombra de Michael Nyman ou Thomas Newman, faz-se também sem atrito a ligação ao músico bretão Yann Tiersen, alguém que sempre fez parte do seu referencial de base – a editora francesa de ambos, a Naïve, apresenta mesmo Noiserv no seu site como “um cruzamento perfeito entre Sufjan Stevens e Yann Tiersen”. David, pouco estudioso da música contemporânea composta para o instrumento, cita antes a respiração do piano de Bernardo Sassetti na banda sonora de Alice e admite a infiltração incidental de algumas reminiscências de O Piano, de Nyman, e de Amélie, de Tiersen. “Não é uma relação pensada”, explica. “Tal como não tento fazer músicas parecidas com Radiohead, Sigur Rós, Explosions in the Sky ou Jeff Buckley. Mas aquilo de que gosto nas músicas deles é aquilo de que gosto na minha música.”
00.00.00.00 (o timecode para o início da rodagem de um filme que ainda não existe e que esta banda sonora, imagina Noiserv, poderia acompanhar) não se desloca um centímetro que seja em relação ao habitual eixo da sua música: no centro continua uma colecção de temas introspectivos. Uma colecção de temas fundados, desta vez, na beleza do piano, baptizados com o número do rascunho de trabalho (ou da cena do filme que haveriam de ilustrar) e que apenas poupam na transcendência que a beleza pode alcançar e na curta duração do registo. Mas atenção às falsas pistas: os zeros do título não indiciam um novo começo para Noiserv. O mais provável é que depois disto volte a fechar-se na sua ilha de brinquedos musicais e regresse ao inglês. A menos que, num jogo de basquetebol, o pé lhe volte a escapar.