Saúde Mental: a urgência de uma reforma sempre adiada
Apesar de um crescente reconhecimento da necessidade de incluir a saúde mental entre as prioridades da agenda de saúde pública, a verdade é que continua a verificar-se uma insuficiente implementação de estratégias de prevenção da doença e de promoção da saúde mental
Comemora-se a 10 de outubro o Dia Mundial da Saúde Mental, este ano sob o lema “Primeiros Socorros Psicológicos”. Esta é uma data utilizada em todo o mundo para sensibilizar a população e para mobilizar apoios para as questões da saúde mental, objetivo de enorme importância já que esta área continua a ser uma das mais escondidas e negligenciadas da saúde. Ainda que seja reconhecida a importância da saúde mental para o bem-estar dos indivíduos e para o desenvolvimento das sociedades, mantêm-se o estigma, a discriminação, a exclusão social e, tantas vezes, as violações dos direitos humanos dirigidos às pessoas com doença psiquiátrica. Apesar de um crescente reconhecimento da necessidade de incluir a saúde mental entre as prioridades da agenda de saúde pública, a verdade é que continua a verificar-se uma insuficiente implementação de estratégias de prevenção da doença e de promoção da saúde mental e, cumulativamente, enormes dificuldades no acesso aos cuidados de saúde e na qualidade dos tratamentos disponíveis para as doenças psiquiátricas.
Dados epidemiológicos anteriores ao período de crise económica mostravam que as doenças psiquiátricas apresentavam uma elevada prevalência na Europa, representando 22% da carga de incapacidade medida em Anos Vividos com Incapacidade, constituindo-se como uma das principais causas de sofrimento e de perda de capital mental (potencial cognitivo, intelectual e emocional) de cidadãos, famílias e comunidades. A informação epidemiológica já disponível mostra que a situação se agravou nos últimos anos, em consequência dos efeitos da crise económica na saúde mental das populações. Relembramos que Portugal tem uma das taxas de prevalência de perturbações psiquiátricas mais elevadas na Europa (Caldas-de-Almeida & Xavier 2013)
A constatação do impacto da doença psiquiátrica nas sociedades levou a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a União Europeia (EU) a promover diversas iniciativas de ação estratégica para as políticas de saúde mental (Estratégias e Planos de Ação de Saúde Mental da OMS a nível Global e Europeu, Livro Verde “Melhorar a saúde mental da população. Rumo a uma estratégia de saúde mental para a União Europeia”, Pacto Europeu para a Saúde Mental e o Bem-estar, Ação Conjunta “Saúde Mental e Bem-estar”). O desenvolvimento de cuidados de saúde mental na comunidade para pessoas com doença psiquiátrica grave que promovam a inclusão social e a reabilitação psicossocial é um dos objetivos sistematicamente apontado como prioritário nas iniciativas referidas.
Importa salientar que Portugal teve um papel muito ativo no desenvolvimento destas iniciativas, assumindo o compromisso da sua implementação. No entanto, apesar dos avanços verificados nos últimos anos, o acesso a tratamento psiquiátrico e a cuidados de saúde mental no nosso país continua a ser um enorme problema e muitos dos que os têm continuam a não beneficiar dos modelos de intervenção hoje considerados mais efetivos e, como tal, essenciais.
Uma reforma muito aguardada no setor com vista à melhoria da prestação de cuidados é a da implementação da Rede de Cuidados Continuados Integrados de Saúde Mental, descrita no Plano Nacional de Saúde Mental. Criada pelo Decreto-Lei nº 8/2010 esta rede será constituída por “unidades e equipas multidisciplinares com vista à prestação de apoio psicossocial e de cuidados médicos, ao reforço das competências, à reabilitação, à recuperação e integração social das pessoas com incapacidade psicossocial bem como à promoção e reforço das capacidades das famílias que lidam com estas situações”. Na revisão posterior do referido articulado legal (Decreto-Lei 22/2011) pode ler-se "1–O presente decreto -lei cria um conjunto de unidades e equipas de cuidados continuados integrados de saúde mental, destinado às pessoas com doença mental grave de que resulte incapacidade psicossocial e que se encontrem em situação de dependência, independentemente da idade, adiante designadas como pessoas com incapacidade psicossocial. 2–O referido conjunto de unidades e equipas de cuidados continuados integrados específicas de saúde mental, inclui unidades residenciais, unidades sócio ocupacionais e equipas de apoio domiciliário, e articula -se com os serviços locais de saúde mental (SLSM) e com a rede nacional de cuidados continuados integrados (RNCCI).".
Aparentemente ultrapassado o risco que se correu no período de vigência do anterior governo de alteração profunda do cerne do projeto, que passaria de técnico-reabilitativo a assistencialista, recebemos com enorme impaciência os sucessivos adiamentos do arranque das experiências-piloto, definidas em diplomas de 2011, uma vez que as pessoas com doença psiquiátrica grave e as suas famílias continuam a esperar e a desesperar pela sua implementação.
Congratulamo-nos com os avanços recentes na RNCCI e, também e sobretudo por isso, não queremos deixar de juntar a nossa voz ao apelo para que se estendam aos Cuidados Continuados Integrados de Saúde Mental. Seria uma enorme satisfação para pessoas com doença psiquiátrica, famílias e profissionais que diariamente acompanham a insuficiência de respostas existentes se o Dia Mundial da Saúde Mental fosse escolhido pelo atual governo – em particular pelo ministério da Saúde -, em cuja ação depositamos esperança, para o anúncio de um compromisso claro e definitivo com a implementação desta reforma, demonstrando estar atento a este grupo de cidadãos sem voz e historicamente desprovidos de direitos.
Ana Matos Pires, Manuela Silva e Pedro Morgado, médicos psiquiatras