A vitória também é da diplomacia portuguesa

Às qualidades do candidato Guterres somou-se um núcleo duro de embaixadores “todos a puxar para o mesmo lado”. Os bastidores de uma campanha que fez mexer toda a máquina diplomática portuguesa.

Foto
A entrada em cena da búlgara Kristalina Georgieva não causou “grandes preocupações” na entourage MUHAMMAD HAMED /REUTERS

Quando António Guterres deixou o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), em Dezembro de 2015, já os mais próximos do antigo primeiro-ministro tinham como certo há muito tempo que ele iria candidatar-se a secretário-geral das Nações Unidas. E todos tinham uma certeza: o caminho seria difícil, mas a determinação e as qualidades do candidato eram garantia para alcançar a vitória. A campanha foi discreta mas intensa e envolveu a máquina diplomática portuguesa, o Governo e o Presidente da República.

A certeza de que o caminho ia ser duro esteve em cima da mesa desde a primeira hora. Por um lado, Guterres tinha a seu favor o currículo político, os dez anos à frente do ACNUR, período que muitos consideram que geriu com grande perspicácia política, vencendo um ambiente geopolítico muito complexo, especialmente devido às constantes crises de refugiados.

Por outro, Guterres tinha contra si a geografia e o género. Embora existissem novas regras de eleição, continuava a vingar a ideia que o próximo secretário-geral viria de um país do Leste da Europa e, mais recentemente, ganhou peso a ideia de que deveria ser uma mulher a gerir os destinos das Nações Unidas.

A porta para a candidatura avançar abriu-se no início deste ano, quando o Governo português, como todos os outros membros da ONU, recebeu uma carta da Assembleia Geral das Nações informando que em Setembro iria haver um novo secretário-geral e questionando se Portugal desejava avançar com uma candidatura. Desejava e há muito que ela vinha a ser debatida e preparada nos bastidores.

Por essa altura, Guterres já tinha tido várias conversas com António Costa e com outros membros do Governo, que detinham total conhecimento dos traços gerais da candidatura e a apoiavam incondicionalmente.

A resposta de António Costa à ONU não tardou. A 29 de Fevereiro chegava à sede das Nações Unidas a formalização da candidatura por parte do Governo português. Uma missiva assinada por Costa, que apresentava Guterres como um homem que “demonstrou a sua capacidade de liderança e compromisso para como os objectivos da ONU”.

Por esta altura, um “núcleo duro” formado por experientes diplomatas já estava no terreno fazendo lobby pela candidatura. António Monteiro, Morais Cabral, Seixas da Costa, José Freitas Ferraz e Álvaro Mendonça Moura, embaixador português junto das Nações Unidas, formaram uma espécie de frente avançada da candidatura.

Reuniram-se várias vezes com Guterres e “atacaram” as múltiplas frentes diplomáticas: países lusófonos, União Europeia, países de Leste, Estados Unidos, com Álvaro Mendonça de Moura apontado como “preponderante” pela sua estratégia em Nova Iorque, “onde muita coisa se decide”, como disse ao PÚBLICO um diplomata.

“Foi decidido avançar com grande prudência, mas de forma determinada. Até porque, com as novas regras de eleição, estávamos num terreno desconhecido. Mas desde a primeira hora que tínhamos a confiança de uma candidatura ganhadora”, afirma Francisco Seixas da Costa.

O “núcleo duro” da candidatura tinha porém uma certeza, prossegue o diplomata: “Um processo mais transparente favorecia António Guterres. Graças às suas qualidades, ao seu importante currículo, às ideias claras e determinadas, tinham tudo para ganhar num processo mais transparente e, como tal, como menos jogos de bastidores.”

Apoio unânime

A primeira vitória foi conseguida após ter sido sondada a maioria dos 15 membros do Conselho de Segurança, incluindo cinco membros permanentes deste órgão – China, França, Estados Unidos, Grã-Bretanha e Rússia. Não houve nenhuma rejeição, embora EUA e Rússia tivessem optado por não dizer nem “sim” nem “não”. Não houve, porém, nenhuma atitude negativa em relação a Guterres, e isso era um passo de gigante. Mais, nos muitos contactos diplomáticos que iam sendo feitos, havia cada vez mais países a colocarem-se ao lado do candidato português.

O embaixador António Monteiro fala num outro dado “determinante para o sucesso internacional” desta iniciativa: “O apoio nacional praticamente unânime em torno da candidatura. Este facto, aliado à excelência da própria campanha, a modéstia, a disponibilidade, as ideias fortes e determinadas e o empenho do candidato fizeram o resto para uma candidatura vitoriosa.”

O trabalho diplomático em Portugal também é considerado “muito importante” no desfecho vitorioso. No Ministério dos Negócios Estrangeiros, foram criadas equipas de apoio à candidatura, e o embaixador Freitas Ferraz, responsável do Instituto Diplomático, tinha encontros frequentes com Isabel Pestana, da Presidência da República, e com elementos do gabinete do primeiro-ministro, António Costa, e altos funcionários. A maioria dos encontros decorreu no gabinete de Margarida Marques, secretária de Estado dos Assuntos Europeus.

Embora de forma discreta, toda a diplomacia portuguesa se envolveu. A palavra de ordem era, segundo disse ao PÚBLICO uma fonte diplomática, “todos a puxar para o mesmo lado”. Ou seja, para o lado de Guterres.

Quando, a 21 de Junho, a primeira reunião dos 15 membros do Conselho de Segurança, à porta fechada, deu a primeira vitória a António Guterres, não houve grande surpresa entre os homens mais próximos. Nem na primeira vitória nem nas outras cinco que se seguiram.

“Houve sempre uma enorme confiança graças às qualidades do candidato. Teve sempre enorme tranquilidade e revelou uma visão internacional excepcional”, assegura António Monteiro.

A entrada em cena da búlgara Kristalina Georgieva no final de Setembro, com uma licença sem vencimento do cargo de comissária europeia do Orçamento e Recursos Humanos não causou “grandes preocupações” entre os homens mais próximos da candidatura portuguesa — mas indignou.

Francisco Seixas da Costa fala em processo “chocante”, que acabou por “se virar contra” Georgieva. “A transparência e as qualidades de António Guterres acabaram por evitar um golpe de última hora. Os membros do Conselho de Segurança acabaram por ficar de mãos atadas face às qualidades de Guterres em relação às dos outros candidatos”, garante.

Já António Monteiro assegura que a chegada de Georgieva à corrida não causou “qualquer agitação” na candidatura de Guterres, mas refere um processo em que “a União Europeia fica mal” e que é “um péssimo exemplo”.

Monteiro repete uma frase que usou no dia em que se soube que a candidata búlgara ia avançar: “Só era Kristalina de nome, de resto era muito opakalina. Desprestigiou a Comissão Europeia e o seu presidente. Para nós, só serviu para reforçar a nossa confiança.”

No dia em que se soube que António Guterres será o próximo secretário-geral da ONU, Seixas da Costa resumiu todo o processo que o levou ao cargo numa frase: “Um candidato que emergiu do mundo ocidental e a quem a Rússia disse sim.”

Sugerir correcção
Comentar