Retinopatia: Há 160 mil diabéticos em Portugal com a doença que os pode cegar
Primeiro estudo epidemiológico no país sobre a retinopatia avaliou mais de 52 mil diabéticos e concluiu que 16,3% sofrem da doença que é a principal causa de cegueira na população activa e extrapolou os dados para todo o país.
Um grupo de investigadores fez o primeiro estudo epidemiológico em Portugal da retinopatia diabética, concluindo que 16,3% das 52.739 pessoas examinadas sofria da doença que é a principal causa de cegueira em idade activa nos países desenvolvidos. O programa de rastreio específico Retinodiab avaliou a prevalência, incidência e progressão da retinopatia diabética em pessoas com diabetes de tipo 2, apoiando-se no acompanhamento que a Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal (APDP) faz na região de Lisboa e Vale do Tejo. Os resultados, já publicados em revistas científicas e que fazem parte da tese de doutoramento de Marco Dutra, sublinham a importância de rastreios regulares aos diabéticos.
A retinopatia diabética é considerada uma doença silenciosa. Quando as manchas ou a perda de visão se manifestam, a doença já se encontra numa fase avançada, necessitando de abordagens mais invasivas para o tratamento. Os problemas surgem quando os pequenos vasos sanguíneos na retina são afectados por elevadas quantidades de açúcar e, sem tratamento, as lesões evoluem desde a fase não proliferativa geralmente assintomática até ao grau mais grave da fase proliferativa quando ocorre a perda de visão.
Até agora, a prevalência em Portugal desta complicação ocular da diabetes baseava-se em estimativas apoiadas nos dados europeus, explica ao PÚBLICO Marco Dutra, o investigador principal do Retinodiab. O programa avaliou a prevalência da doença em 52.739 pessoas que já tinham o diagnóstico de diabetes do tipo 2 há, pelo menos, cinco anos. O grupo de estudo, que incluiu os especialistas da APDP, realizou um total de 103.102 retinografias entre Julho de 2009 e Outubro de 2014.
“Globalmente, a retinopatia diabética foi detectada em 8584 doentes (16,3%)”, lê-se nas conclusões do trabalho. “Destes doentes, 5484 (10,4%) tiveram retinopatia diabética não proliferativa (RDNP) ligeira, 1457 (2,8%) tiveram RDNP moderada e 672 (1,3%) foram diagnosticados com RDNP grave. Finalmente, 971 doentes (1,8%) tiveram retinopatia diabética proliferativa (RDP), exigindo referenciação urgente para uma consulta da especialidade. Setecentos e trinta e dois doentes (1,4%) foram classificados com maculopatia [uma doença que afecta uma zona diferente da retina, a mácula, e também resulta em perda de visão]”, conclui ainda o trabalho. “São números esmagadores”, reage Marco Dutra.
Como todas as doenças, quanto mais tarde for o diagnóstico, mais difícil será tratar esta complicação. No pior dos cenários – que infelizmente não será assim tão raro quanto isso –, a retinopatia pode levar à cegueira.
Segundo dados publicados no final do ano passado pela Sociedade Portuguesa de Oftalmologia, todos os anos mais de 3000 pessoas ficam cegas de forma irreversível em Portugal devido a esta doença, que se manifesta sobretudo em diabéticos que não têm a doença devidamente controlada.
Um milhão em risco
Apesar de actualmente existirem programas de rastreio específico para esta complicação ocular da diabetes em todas as regiões de saúde do país, a realidade é que há falhas e uma grande assimetria regional no acesso ao rastreio.
De acordo com o Observatório Nacional da Diabetes, a prevalência estimada da diabetes em pessoas com idades entre os 20 e os 79 anos é de um milhão de portugueses, sendo que cerca de 400 mil não estão sequer diagnosticados.
No caso de um diagnóstico de diabetes, os doentes recebem uma convocatória para a realização do simples exame, que pode ser feito num centro de saúde e consiste na captação de imagens da retina com um par de fotografias a cada olho. Segundo o relatório anual do Observatório Nacional da Diabetes de 20015 “o número de pessoas com diabetes abrangidas pelos programas de rastreio da retinopatia diabética tem vindo a aumentar desde 2009 (223%)”. Porém, estamos muito longe de uma cobertura total.
“O problema é que temos em Portugal um milhão de pessoas com diabetes, destas andam cerca de 700 mil em tratamento e a noção que temos é que menos de 10 ou 15% destes doentes terão acesso ao programa de rastreio da retinopatia diabética”, refere João Raposo, director clínico da APDP e professor na Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa (Nova Medical School).
Assim, para termos uma vaga noção da população em risco devemos somar aos mais 85% de diabéticos que não fazem qualquer rastreio as cerca de 300 ou 400 mil pessoas que, segundo as estimativas, sofrem de diabetes mas não sabem. Somando os diabéticos diagnosticados e por diagnosticar, existe em Portugal aproximadamente um milhão de pessoas que devia fazer um rastreio para a retinopatia diabética e não o faz.
Mas por que há tantos diabéticos que não fazem este rastreio? “Os doentes faltam ao rastreio porque não têm queixas de visão ou porque já usam óculos e até acertaram as lentes numa casa de óptica e acham que isso equivale a um exame oftalmológico ou, simplesmente, porque desconhecem o problema da retinopatia diabética e o grave risco que correm”, constata João Raposo, que frisa o perigo da evolução silenciosa desta doença. “As pessoas às vezes queixam-se de pequenas alterações da visão, visão turva ou outras, mas essas não são as queixas da retinopatia. Esta doença manifesta-se, numa fase tardia, com perda de visão, por zonas do campo visual ou a totalidade. É a principal causa de cegueira nos países ocidentais”, alerta.
Um gestor da doença
João Raposo e Marco Dutra insistem na importância de um programa de rastreio bem executado. Até porque, argumentam, isso também se traduz numa poupança de recursos. “Cerca de 80% das pessoas que comparecem num rastreio não necessitam de mais nada a não ser regressar para o rastreio no ano seguinte. Só 20% das pessoas é que serão encaminhadas para consulta e destas só uma parte necessitará de um tratamento diferenciado”, nota João Raposo.
Preocupado, Marco Dutra reforça que “sem informação adequada, estes doentes já aparecem no fim da linha, com a doença numa fase avançada e com um prognóstico muito mais reservado”. Além do risco de um confronto com uma cegueira irreversível, um diagnóstico tardio também significa custos mais elevados. “Com estes doentes que já nos chegam numa fase tardia da doença temos um acréscimo significativo da despesa pública, porque temos de recorrer a uma terapêutica como o laser ou a cirurgia, em que para salvarmos um olho podemos gastar seis ou dez mil euros. Se detectarmos esta patologia em fases precoces, o custo pode ser 5% desse valor. Esta é das doenças com maior custo-benefício a nível do rastreio”, avalia.
“O Retinodiab é um estudo pioneiro em Portugal com uma grande casuística e é importante para nos consciencializar desta patologia e termos a ideia de que há muitas pessoas diabéticas que não sabem que têm de fazer o rastreio da retinopatia diabética”, nota Marco Dutra, que ao longo da investigação clínica e epidemiológica publicou sete artigos científicos. Em Novembro, vai defender a tese de doutoramento na Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa.
O primeiro estudo epidemiológico sobre a retinopatia diabética em Portugal também avaliou a progressão da doença durante os cinco anos de trabalho. “Um total de 30.641 doentes (53,85%) teve pelo menos mais do que um rastreio durante o período de estudo e foi incluído na análise de progressão da retinopatia diabética. A incidência anual de qualquer retinopatia em doentes sem retinopatia no início do estudo foi de 4,60% no primeiro ano, diminuindo para 3,87% no quinto ano. Em participantes com RDNP ligeira no início do estudo, a taxa de progressão para a retinopatia diabética proliferativa no primeiro ano foi de 1,18%”, concluem os peritos do Retinodiab.
“Este estudo reforça o nosso conhecimento e dá-nos a garantia de que a nossa realidade é semelhante à realidade descrita noutros países. E, por outro lado, dá-nos uma base firme de informação na discussão de políticas de saúde. Também vamos conhecendo melhor a história da retinopatia diabética e como evolui ao longo do tempo”, refere João Raposo.
O especialista, que também faz parte do conselho científico do Observatório Nacional das Diabetes, faz questão de sublinhar a necessidade de apostar na melhoria do acompanhamento destes doentes. “É preciso estarmos conscientes da importância de uma equipa multidisciplinar no acompanhamento do doente e de existir alguém que funcione como o gestor dessa doença crónica, ficando responsável pela educação da pessoa que tem diabetes. Isto é fundamental neste processo”, refere.
Em Abril, o Governo português publicou um despacho que reconhecia “os maiores ganhos em saúde” bem como a relação custo-benefício dos rastreios populacionais, “nomeadamente da retinopatia diabética, cancro da mama, cancro do colo do útero e colo-rectal”. O despacho determina que as administrações regionais de saúde devem tomar medidas para “melhorar a taxa de adesão aos rastreios, garantir a sustentabilidade da sua execução e informar os cidadãos da importância dos mesmos para a detecção da doença ainda em fase subclínica, evitando ou diminuindo a carga da doença”. Este mês, o Bloco de Esquerda apresentou um projecto de resolução que pede que as medidas previstas no despacho “sejam efectivamente implementadas” e reclama um relatório sobre a actual situação a nível nacional.