No meu tempo é que era bom, Archie Bunker

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Edith e Archie durante uma das suas irresistíveis conversas na sala de estar de Uma família às direitas
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É um segredo que nunca tinha contado a ninguém, como fica bem a qualquer segredo que se preze: durante uma fase da minha adolescência, fui adoptado por uma família norte-americana, apesar de continuar a viver todos os dias com a minha família biológica em Portugal. Durante o dia, fazia a vida no Barreiro, ia à escola e jogava Manic Miner no ZX Spectrum enquanto esperava que o Sporting fosse campeão outra vez; à noite, depois do jantar, mudava-me para a sala de estar da família Bunker, no bairro nova-iorquino de Queens, e ficava lá num canto à espera que o Archie e a Edith abrissem as goelas: “Boy the way Glenn Miller played / Songs that made the hit parade / Guys like us we had it made / Those were the days”.

“Those were the days”, cantavam os meus pais adoptivos, ele sentado ao piano ao lado dela, ela a tocar nas teclas e a furar-nos os tímpanos quando atacava aquele “And you knew who you were THEEEEEEN!”. Se eles soubessem que eu me escondia lá em casa deles todas as noites (por algum motivo chamaram caixa mágica à televisão), talvez tivessem cantado em bom português “no meu tempo é que era bom” ou “no meu tempo não era assim”. Duas versões de uma daquelas verdades universais, como acreditar na existência do Pai Natal quando somos crianças e na boa vontade das empresas de seguros quando já temos idade para ter juízo: aconteça o que acontecer, faça chuva ou faça sol, era precisamente no nosso tempo que não era assim. Nunca no tempo dos outros, nem dos mais velhos, nem dos mais novos – no nosso tempo é que era bom.

É claro que essa é uma das maiores mentiras que as pessoas contam a si próprias. Excepto no meu caso. No meu caso, sim, no meu tempo é que era bom. Porque se é verdade que no meu tempo as pessoas morriam mais cedo e não havia Internet (o que era ainda mais dramático, claro), a RTP transmitia, retransmitia, reretransmitia e rereretransmitia programas como se não houvesse amanhã. E ainda bem, porque já naquele tempo eu sabia que amanhã tudo ia ser pior, porque no meu tempo é que era bom.

Mas vamos lá ao que interessa – como diria o Archie Bunker (Carrol O'Connor), o autor deste texto está claramente a “próstatinar”.

A série All in the family caiu como uma bomba na televisão dos Estados Unidos em 1971 e chegou a Portugal muitos anos mais tarde, com o título Uma família às direitas. Se havia algum trocadilho na tradução para português, ele só se aplicava ao Archie Bunker, o patriarca da família, todo ele às direitas dos pés à cabeça, com tudo o que isso representava naquela América que ainda se tentava ajustar ao movimento de contracultura dos anos 60 – um veterano da Segunda Guerra Mundial ultraconservador, preconceituoso, racista e defensor de que uma mulher às direitas só podia estar ou na cozinha, ou na cozinha a cozinhar.

E era isso que a Edith (Jean Stapleton) fazia, quando não estava a compensar a lentidão de raciocínio com a rapidez com que trazia uma cerveja ao marido. De vez em quando – muito de vez em quando –, a Edith tentava bater o pé ao Archie, mas o argumento final dele era quase sempre irrefutável, graças a um complexo dispositivo retórico, condensado de forma brilhante em apenas duas palavras: “Cala-te, Edith!”

O Archie e a Edith tinham uma filha, a Gloria, que era linda e bem comportada até ao dia em que apresentou o namorado aos pais. Aos olhos da Gloria, da Edith e de todos os telespectadores, ele chamava-se Michael e era um jovem universitário inteligente, se bem que um pouco presunçoso; mas aos olhos do Archie, a sua “menina” tinha levado para casa o Diabo – um hippie com ideias esquisitas e perigosas, como aquela de que as mulheres têm os mesmos direitos que os homens e a de que os negros são tão competentes como os brancos para desempenharem qualquer papel na sociedade.

Era uma série feita de choques – culturais, sociais, geracionais – e de uma mistura de sentimentos que acontece até nas melhores famílias. A Gloria ia-se deixando convencer pelos argumentos liberais e progressistas do Michael, mas amava de forma incondicional o seu papá preconceituoso e racista; a Edith sabia, bem lá no fundo, que não servia apenas para trazer cervejas ao marido, mas o Archie era o amor da sua vida e a vida é mesmo assim; e o Archie amava a Edith e a Gloria com a mesma intensidade com que desprezava o Michael.

“Those were the days”, lamentava o Archie já em 1971. “No meu tempo é que era bom.” Mas se tivesse vivido tempo suficiente para assistir à tomada de posse de um Presidente negro e à candidatura de uma mulher à Casa Branca, o Archie estaria hoje a dizer maravilhas sobre 1971. Porque, aconteça o que acontecer, faça chuva ou faça sol, era precisamente no nosso tempo que não era assim. Nunca no tempo dos outros, nem dos mais velhos, nem dos mais novos – no nosso tempo é que era bom.

Nome original: All in the family

Protagonistas: Jean Stapleton, Carrol O'Connor, Danielle Bisbois, Martin Balsam, Anne Meara, Rob Reiner, Sally Struthers, Mike Evans, entre outros.

Anos em que passou na TV: 1971-1979 nos Estados Unidos. Em Portugal foi transmitida pela RTP na década de 1980, sendo repetida na SIC Gold anos mais tarde e na RTP Memória.

 

Esta série é publicada à segunda-feira e à terça-feira. Próxima: Duarte & C.ª

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