Uma cimeira sem resultados concretos, convocada “por causa da guerra na Síria”
Já se sabia que do encontro que marcou o arranque da Assembleia Geral da ONU não saíram compromissos em relação aos 65 milhões de refugiados e deslocados espalhados pelo mundo. Um alto-comissário criticou “os sectários” que recusam “partilhar as responsabilidades”.
Foi a primeira vez desde a sua fundação que as Nações Unidas dedicaram um encontro aos refugiados e imigrantes e isso, “apesar de tudo, pode ser considerado como um primeiro passo”, diz ao jornal Le Monde a presidente da ONG Médicos do Mundo. Françoise Sivignon não é a única a afirmar-se “desiludida” com a cimeira que abriu a Assembleia Geral da ONU, onde 193 países prometeram empenhar-se para “proteger os direitos fundamentais de todos os refugiados”. São 65 milhões, entre os que fugiram dos seus países e os deslocados que abandonaram as suas casas sem atravessar fronteiras.
Do encontro saiu uma declaração de intenções, sem números ou objectivos concretos, ao contrário do que pretendia inicialmente o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, e para frustração das grandes ONG – da Amnistia Internacional aos Médicos Sem Fronteiras, poucas deixaram de divulgar relatórios e comunicados a criticar a falta de ambição da declaração final assinada em Nova Iorque.
Quando as discussões começaram, Ban sugeriu que os países se comprometessem a acolher 10% do total dos refugiados (89% destes, de acordo com o Banco Mundial, estão em países em desenvolvimento, a maioria vizinhos daqueles de onde fogem) até 2017. No final das negociações, esse objectivo já tinha desaparecido do texto e sido adiado para 2018, no melhor dos cenários.
Claro que, como lembrou a representante de Ban para esta cimeira, Karen Abuzayd, o que os líderes mundiais aceitaram foi tentar atingir o objectivo já estabelecido pelo Alto Comissariado da ONU para os Refugiados, que passa por reinstalar 5% de todos os refugiados (actualmente em situações temporárias e à espera de uma solução). A concretizar-se, isso equivaleria a acolher 1,1 milhões de pessoas até ao fim do próximo ano, quando em 2015 só 100 mil foram recebidas através deste mecanismo do ACNUR.
A resposta da esmagadora maioria dos países tem sido tão má que mesmo um objectivo de 5% representa melhorar a vida de dez vezes mais pessoas do que foi possível fazer em 2015. Há excepções, claro, como Portugal, que se disponibilizou para acolher mais do dobro dos refugiados que teria de fazer, através do ACNUR e do programa de recolocação da União Europeia, ou a Alemanha, que há um ano abriu as portas a 800 mil pessoas à margem de todos estes processos internacionais.
Recusando a ideia de que a cimeira da ONU não passou de um encontro “de autocongratulação” (a Nobel da Paz paquistanesa Malala Yousufzai chamou-se “um concurso de simpatia”), o alto-comissário para os Direitos Humanos da ONU, Zeid Ra’ad al-Hussein, atacou os “sectários e bandidos” que recusam “partilhar as responsabilidades” e acolher refugiados no países que governam. “Muitos parecem ter esquecido as duas guerras mundiais, o que acontece quando o medo e a cólera são atiçados por meias verdades e mentiras flagrantes”, afirmou, numa intervenção que arrancou aplausos.
São poucos os países que se podem orgulhar de um comportamento exemplar em relação aos refugiados. As ONG costumam apontar a Alemanha e o Canadá como bons exemplos: o primeiro devido aos programas de emprego e integração que está a pôr em prática, depois de receber tanta gente; o segundo porque antecipa muito bem a chegada, melhorando assim a integração de refugiados, ao envolver desde o início as comunidades locais no processo.
Encontrar comportamentos piores é mais fácil, incluindo vários países europeus, da Hungria à Sérvia, ou mesmo o Reino Unido, que evocando a ameaça do terrorismo ou o risco de destabilização interna, tudo fazem para travar os que lá tentam chegar ou aqueles que apenas tentam passar por estes territórios no caminho para refazerem as suas vidas.
Fracasso em travar conflito
“A amarga verdade é que esta cimeira foi convocada porque nós fracassámos, fracassámos em pôr fim à guerra na Síria”, disse ainda o responsável para os Direitos Humanos da ONU. A guerra síria é a principal explicação para o grande aumento de refugiados no mundo – nunca houve tantos desde a II Guerra. São pelo menos 4,9 milhões os sírios fora da Síria por causa da violência, da fome ou da ausência de acesso a cuidados médicos, numa guerra que já matou mais de 400 mil pessoas e onde última tentativa de trégua foi dada como morta enquanto os países estavam reunidos em Nova Iorque.
A Síria mostra bem como são quase sempre os países com menos meios a arcar com o grosso do esforço. “Sem um esforço massivo da comunidade internacional, o Líbano corre o risco de colapso”, apelou o primeiro-ministro libanês, Tammam Salam, na cimeira, lembrando que o seu país de 4 milhões de habitantes acolhe hoje 1,5 mil milhões de sírios.
Entre muitas declarações e antes da assinatura do comunicado final, um texto de intenções políticas, surgiu, aqui e ali, algum compromisso palpável, para lá das intenções políticas. A China anunciou uma contribuição de 100 milhões de dólares (cerca de 89,5 milhões de euros) para ajuda humanitária aos refugiados. O Governo de Pequim, diz o primeiro-ministro, Li Keqiang, “está pronto a assumir as suas responsabilidades em função das suas capacidades”.
Terça-feira será a vez do Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, abordar esta crise num encontro para o qual convidou 45 nações doadoras. A ideia, aproveitando a presença no país de tantos chefes de Estado e de Governo, é levar os dirigentes a comprometerem-se com números concretos de refugiados que podem acolher, assim como a contribuir com dinheiro para aumentar as suas possibilidades de educação e emprego nos países em que já se encontram. O próprio Obama deu o exemplo ao anunciar que os EUA vão receber ao longo do próximo ano 110 mil refugiados que estão hoje espalhados pelo mundo.