Para Portugal, “acolher 10 mil pessoas é perfeitamente realista e assimilável”
É preciso melhorar a coordenação nacional e ter atenção aos pormenores, mas "houve um apelo de emergência e isso significa termos de nos organizar em tempo recorde", lembra Teresa Tito de Morais. "Vamos ver se estamos à altura."
O Centro Português para os Refugiados (CPR) faz terça-feira 25 anos. Teresa Tito de Morais é desde o início a presidente da organização que representa em Portugal o Alto-Comissariado da ONU para os Refugiados. São anos de experiência e de desafios, como o último, o processo de distribuição de 160 mil pessoas que já estão na União Europeia nos vários estados-membros – um objectivo longe de estar cumprido porque muitos recusam os compromissos. Não é caso de Portugal, disponível para acolher mais 5800 refugiados além dos 4500 previstos (incluindo 191 de países de fora da UE), atitude que enche a responsável de “orgulho” face “a um mundo com tantos egoísmos”.
Como é que é possível que a UE esteja tão longe de recolocar 160 mil pessoas (está cumprido 3% do objectivo final)?
Estamos muito aquém. A única explicação é que os estados não se entendem e há, de facto, alguns países que bloqueiam o trânsito, como a Hungria, Croácia, países da zona dos Balcãs. Por outro lado, aqueles países como a Alemanha, a Suécia e também a Áustria que já têm muita gente, pessoas que não foram incluídas nestes números decididos em conjunto (a Alemanha recebeu 800 mil pessoas que não contam) dizem os outros deviam fazer a sua parte. Estamos a falar de 160 mil pessoas a distribuir em dois anos por todos os estados-membros. Grande parte continua a aguardar na Grécia, Itália, na Bulgária. Já para não falar de quem está na zona de Calais, em França, a tentar ir para o Reino Unido, esses não estão abrangidos. A UE não tem conseguido encontrar mecanismos eficazes e céleres para assumir aqueles compromissos que lhe foram impostos. Mas há outros países, como Portugal, tão disponíveis que até duplicou a quota inicialmente atribuída.
Um ano depois do que parecia ser o grande despertar, depois de tantos anúncios e recuos, com os gregos a serem responsabilizados e Atenas a dizer que os outros não ajudam, o que falhou?
Falta muito trabalho para melhor o processo de registo nos chamados hotspots. Esta é uma população que tem uma grande mobilidade e às vezes já não está onde se esperava que estivesse, as pessoas tentam pelos seus meios atingir os países de que têm mais referências ou onde têm familiares, amigos. Há uma tendência, a maior parte quer ir para a Suécia, a Alemanha, não quer ir para Espanha ou vir para Portugal. Falta ainda um plano de acolhimento e integração com a adopção de políticas comuns em todos os estados-membros porque se há um ou dois que vetam ou que se opõem aí a União já começa a estar dividida. Estes desentendimentos e esta falta de estratégia acaba por bloquear todos os compromissos assumidos. E quando falamos destas 160 mil pessoas, esse número tem um ano, agora já não fará sentido, deviam ser mais, já não se tem em conta que continuam a chegar pessoas.
Portugal, pelo contrário, tem tido uma posição muito elogiada.
É um desafio enorme e eu não posso deixar de me congratular com esta disponibilidade do Governo português. Há uma unanimidade em termos políticos, foi o governo anterior que preparou este acolhimento e há um consenso a nível da Assembleia da República. Enquanto há muitas causas que dividem a sociedade portuguesa, neste caso, os nossos governantes têm demonstrado sentido de responsabilidade e solidariedade para com as pessoas vítimas de conflitos e perseguições. Isto é muito positivo e temos orgulho quando vimos tantos governos com comportamentos egoístas.
Estarmos disponíveis e solidários não significa estarmos preparados. Estamos?
Temos total capacidade, 10 mil pessoas não é um número que vá desestabilizar de nenhuma forma o país. Já noutras alturas Portugal assimilou um grande número de pessoas, aconteceu com a descolonização e os retornados, mas também com a guerra do Kosovo ou na Guiné-Conacri. Temos um grande número de brasileiros e de cabo-verdianos a viver no país e os portugueses têm capacidade para acolher e redistribuir estas pessoas.
Tenho de sublinhar o grande envolvimento das comunidades locais. Foi feito um trabalho, da nossa parte, de informação e sensibilização. Mas, sobretudo, é muito importante podermos trabalhar com todos os municípios e com todas as regiões para que este processo de integração se faça da maneira mais fácil e que seja aceite, quer pela comunidade local, quer pelas pessoas que vão viver para lá.
Há um ano, muitas instituições e particulares estavam prontos a ajudar. Essas vontades foram coordenadas, quem está no terreno consegue fazer a ponte entre o voluntarismo e as condições reais? Há queixas em diferentes zonas do país.
É preciso sempre melhorar claro, e ter atenção aos pormenores, como os laços que se vão criando. Tivemos uma família, por exemplo, que aterrou com outra que ficou em Sintra ou em Oeiras mas foi instalada em Santa Comba Dão. Isto pode criar alguma ansiedade, é necessário ter atenção a algumas ligações. E criar condições para onde quer que vão as pessoas terem oportunidades reais de restabelecer a sua vida interrompida. É preciso garantir que há escolas, que há oportunidades de trabalho, o ensino da língua portuguesa é muito importante.E é preciso criar condições para que as pessoas que possam vir já com alguma doença física psicológica tenham acesso aos cuidados de saúde necessários. Se estas condições estiverem reunidas há mais probabilidades de uma integração com sucesso.
O CPR consegue dar conta da parte que lhe é exigida? Tem tido o apoio necessário?
As câmaras municipais têm sido muito cooperantes. A organização não pode estar em todo o lado mas podemos ajudar, dar formação. Temos um papel a desempenhar sempre fruto da nossa experiência. Pela minha longa experiência de trabalhar com refugiados, a preparação faz-se muito, e sobretudo em Portugal, perante a situação. Podíamos ter aproveitado Agosto, quando não houve chegadas, para nos preparamos mais, mas o principal é reagir quando as pessoas chegam. Estamos a falar de pessoas que vêm com um registo inicial, temos de ter pessoas suficientes para os registos, para tratar das autorizações de residências, é necessário fazer as entrevistas que vão determinar se estão cumpridas as condições para a protecção internacional devida aos requerentes de asilo….
Nós próprios no CPR temos um número muito reduzido de pessoas, mas tivemos de criar uma equipa móvel de juristas para participar neste processo, a lei do silo confere-nos essa possibilidade enquanto representantes do ACNUR. Agora isto custa dinheiro. O CPR está preparado? Não, mas vai fazendo. Os serviços fazem-se com pessoas. Mas sobretudo dependemos da boa vontade e das organizações de cada sector que intervém no processo. Dizer ‘Portugal não está preparado e então não vamos receber ninguém’ não pode ser. É uma experiência que vamos ter e vamo-nos preparando à medida que a vamos vivendo. Vamos ver se estamos à altura. Houve um apelo de emergência e isso significa termos de nos organizar em tempo recorde.
E em relação à coordenação nacional, já é possível fazer uma avaliação?
A coordenação tem de ser efectiva, o Grupo de Trabalho da Agenda para as Migrações deve estar mais envolvido na coordenação geral do processo. Instituições como a nossa recebem a informação, dizem-nos que precisamos de encontrar lugar para dez pessoas, para 40 ou 60… Tem de haver uma coordenação mais efectiva. Ainda há muito por fazer para coordenar o plano nacional. As organizações no terreno têm de arranjar os parceiros certos, temos de ter orientações comuns para certos procedimentos. Não podemos ter parceiros em Sintra ou Torres Novas que fazem de uma maneira e outros, em Faro ou Viana do Castelo, que fazem de outra… Há necessidades e a melhoria de coordenação é um desafio que temos pela frente.
Com as pessoas que já acolhemos até agora é previsível que cheguemos aos números pretendidos?
Acolher 10 mil pessoas, julgo que em dez anos, com as primeiras 4500 em dois anos, é um número perfeitamente realista e assimilável. E este é um processo que tem de ser sempre encarado de uma maneira realista mas ao mesmo tempo ambiciosa. Se nos contentarmos com o que temos não chegamos a lidar com as barreiras e com os problemas que se vão colocando.
E que avaliação é que já se pode fazer do pós-instalação? A verdade é que passou pouco tempo, muito pouco para algumas pessoas.
Sim, o período para se considerar terminada a primeira fase de instalação são os 18 meses. Mas a avaliação é positiva. Mesmo os abandonos, os desaparecidos, são poucos. Destas 500 pessoas que foram recebidas 10%, umas 50, 60, já desapareceram. Temos de ter em atenção por que é que isto acontece e como é que se evita. Claro que não vamos prender ninguém, mas se melhorarmos as condições de proximidade com as pessoas, se conseguirmos garantir aquilo que sabemos ser o essencial para sua integração…
Claro que nós não estamos a seleccionar as pessoas, o máximo que podemos fazer é tentar convencê-las, dizer ‘Portugal não é assim tão mau, podes ter isto e aquilo”, é importante conversar para que eles saibam mais. As pessoas vêm muito fragilizadas emocionalmente. Este apoio pós-traumático é muito importante e nós temos pouca tradição.
Enfim, os desafios são enormes e sabemos que se queremos fixar as pessoas temos de estar perto delas. Por isso é tão fundamental o trabalho das câmaras municipais e dos voluntários em vários pontos do país. Sobretudo, queremos que este se apresenta como um país de acolhimento com potencialidades de desenvolvimento pessoal e colectivo. Estas pessoas podem trazer muita riqueza, muitos saberes que podemos e devemos aproveitar.
Esses 50 ou 60 abandonos, cerca de 10%, é um número normal, certo?
É perfeitamente normal, estará dentro da média. Também há muitas pessoas que se vão embora e que depois regressam. Temos casos de jovens que foram tentar encontrar trabalho em França e que regressaram espontaneamente. A maioria das vezes quando saem é por quererem tentar ir para mais perto de amigos e familiares. Não temos provas de que isto seja uma tendência geral, mas já tivemos uma família que voltou para a Turquia. Os que passaram podem voltar para trás, como os processos de reunião familiar demoram tempo e muitos chegam e deixaram a mulher e os filhos, às vezes desesperam e regressam. Mas também tivemos já pessoas que estavam na Alemanha e vieram para cá, se reuniram aqui aos seus familiares.
Nada disto é linear.
Não, não é nada fácil nem nada linear. Há surpresas permanentes e é isso que é estimulante, encontrar soluções e tentarmos ser criativos e trabalhar para que esta população seja acompanhada da melhor maneira, que possa recomeçar a vida de acordo com o que faz mais sentido em cada caso.
Mas quem trabalha no dia-a-dia com estas pessoas e é responsável pelo seu futuro tem essa dose de imaginação?
De uma maneira geral, as pessoas no CPR estão muito abertas e nós temos permanentemente reuniões internas para avaliação de situações, interajuda, troca de experiências. Claro que muitas vezes as pessoas estão a chegar ao limite das suas capacidades de intervenção. Aqui tratam-se de vidas e de encontrar soluções para pessoas. Há necessidade de apoiar os funcionários emocionalmente. Temos de garantir que a tensão que se acumula não ultrapassa um determinado limite. O CPR tem tido sorte, tem criado um ambiente muito positivos. E muitas pessoas estão lá há muito tempo. Há uma fornada mais recente, até por esta exigência da recolocação, mas a grande maioria trabalha lá há mais de dez anos.
E da parte do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras? Estamos a falar de funcionários que viram a sua carga de trabalho aumentar, que estão a lidar com pessoas de origens diferentes, há essa sensibilidade?
Temos muito boas relações com o SEF. Temos tido períodos em que as decisões do SEF coincidem com as nossas avaliações de pedidos de asilo. Outros em que isso acontece menos. Mas quando isso acontece manifestamos o nosso desacordo, sempre com respeito institucional. Portugal pode mesmo ser um exemplo de boa coordenação entre um serviço mais policial e outro que tem uma visão e objectivos de solidariedade e de benefício da dúvida em relação a quem pede asilo.
Mesmo em períodos de muitas dificuldades financeiras para a organização, acabámos sempre por ter a contribuição do Estado português para não fechar centro e não interromper os nossos programas, nomeadamente quando foram interrompidos os programas financeiros da Comissão Europeia. Nem que fosse no último dia, o Governo português acaba por assumir os encargos.
O CPR faz 25 anos. Quais são os desafios e que presentes de aniversário gostaria de receber?
Agora como desafios de futuro temos a construção de um novo centro de acolhimento em São João da Talha, perto da Bobadela. As infra-estruturas já não respondem às necessidades reais. Vai ser financiado pelo Banco Europeu do Conselho da Europa, que tem tradição de apoiar este acolhimento de refugiados desde a II Guerra Mundial e será construído num terreno cedido pela câmara de Loures. Temos tido uma grande colaboração e um aval positivo do nosso trabalho.
Para além do novo centro?
Era muito importante termos capacidade para poder desenvolver as nossas actividades com alguma segurança financeira. É um grande desgaste nunca saber se o dinheiro chega, sobretudo quando os recursos humanos são tão pequenos para o aumento das necessidades espalhadas pelo país – agora já não só em Lisboa e Loures. Do novo centro queremos que reúna todas as condições de dignidade para valorizar as pessoas que lá trabalham e as que lá serão recebidas. E queremos que Portugal continue a expressar uma posição responsável e solidária.