Dois carros e uma moto do Andanças com histórias lá dentro
Cristina tinha recebido um carro novo há seis meses, embrulhado num laço vermelho gigante. A moto de João foi a única a arder no Andanças. Ricardo perdeu o carro onde foi buscar os filhos à maternidade. Que memórias foram com o incêndio que a 3 de Agosto queimou 422 veículos no festival Andanças?
Em Janeiro deste ano, os pais de Cristina Gonçalves compraram um carro novo, pronto a estrear. No dia 25, a filha faria 27 anos. Queriam que a matrícula tivesse o dia exacto do aniversário (já não foram a tempo, mas conseguiram que tivesse o número 27). Embrulharam o Dacia Logan cinzento num grande laço vermelho. E foram de Sintra ao Porto para surpreender a filha.
Cristina vivia com o namorado, Abel, há um ano, a vida em comum estava a avançar, ambos queriam investir mais nas carreiras como músicos. Os pais escolheram um carro onde os instrumentos de ambos (e parafernália associada) coubessem na perfeição.
Cristina sabe que aquele presente falava: “’Estão a começar uma vida, é um incentivo, façam a vossa vida com conforto’. E agora andamos assim…” Assim é passar horas ao telefone, ora com a seguradora, ora com a organização do festival Andanças. Assim é tentar movimentar-se de transportes públicos entre ensaios e concertos com os instrumentos. Assim é: cansados. “Tenho dormido mal, acordo a pensar que ainda tenho de ligar para ‘o não sei quantos’. Ainda não consegui ficar tranquila”, conta Cristina.
Alguma serenidade só “lá para o Natal”, diz João Lopes. No dia 3 de Agosto, estava a almoçar na cantina do Andanças e a dar conselhos sobre motos. João quis mudar de “paradigma de transporte” há quase quatro anos, quando comprou uma scooter para fugir ao trânsito do Porto. Foi uma escolha pensada ao detalhe, analisando todos os prós e contras. Assim como foi a decisão de levar a moto até ao festival, em Castelo de Vide. “Num ano normal teria ido de boleia com amigos. No meu caso a moto permitia ir trabalhar para um sítio mais fresquinho, com menos barulho, menos pó. Foi a ironia das ironias estar à hora errada no sítio errado, por uma boa razão”, diz João.
O violinista estava no Andanças para actuar com o grupo Jam.pt (de que faz parte Abel, namorado de Cristina). Na bagagem da moto levou, literalmente, trabalho para terminar: João é também autor de banda desenhada (e arquitecto) e tinha em mãos uma encomenda do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto. Um trabalho minucioso, pela pesquisa e pelo método, já que todo o desenho é manual. Quando a meio daquele almoço de um dia muito quente de Verão alguém avisou que “havia um incêndio no estacionamento para o lado dos artistas”, João - que tinha estacionado à sombra de uma árvore - não teve grandes dúvidas de que a sua moto teria sido atingida. Com a moto, foi muito mais: um casaco que engenhosamente tinha conseguido colocar na bagageira, luvas, chaves de casa, e, claro, a banda desenhada. “No trabalho feito à mão não há backup, não há cópia de segurança”.
Quando a organização decidiu evacuar o recinto, João, tal como Cristina, caminhou debaixo de altas temperaturas no caminho contrário ao parque de estacionamento, até uma zona junto à água. “Os primeiros momentos foram de estupefacção, as crianças entraram um bocadinho em pânico”, conta João, mas o ambiente foi sempre relativamente calmo e controlado. Cristina recorda que alguns músicos pegaram nos instrumentos e tocaram, para aliviar a tensão.
Nessa altura, o médico Ricardo Mexia já tinha ido à zona das tendas com uma equipa confirmar que não tinha ficado ninguém para trás. Em 2010, quando o Andanças ainda se realizava em São Pedro do Sul, Ricardo ajudou na evacuação do recinto devido a um fogo florestal. Desde 2008 que o médico de saúde pública coordena as equipas de segurança e saúde do festival Andanças (e de outros festivais). É responsável pela vigilância epidemiológica e vigilância de ocorrências anormais, como surtos de doenças. Quando viu a extensão “enorme” de carros ardidos, agarrou-se a um misto de esperança e bom humor: “Eu tinha seguro contra roubo, e portanto tinha aquele desejo secreto que o carro tivesse sido roubado. Mesmo que ele não aparecesse, seria indemnizado por isso”, explica Ricardo.
A verdade é que a carrinha Volkswagen que nos últimos quatro anos ajudou a construir memórias em família – foi nela que foi buscar os filhos, de 1 ano e meio e 3 anos, à maternidade – ficou carbonizada. “Houve quem achasse que aquilo podia ser encarado como um choque em cadeia. Na prática, o meu carro ardeu porque o carro que estava ao lado ardeu”, afirma. O carro já foi para abate, mas Ricardo ainda está à espera do desfecho: “Sem prejuízo de o meu seguro ser apenas contra terceiros e furto, eu não tive responsabilidade no que aconteceu. A minha expectativa é ver algum tipo de indemnização num futuro que, infelizmente, acho que não vai ser muito curto”, diz.
Algumas semanas após o fim do festival, a organização do Andanças, Pé de Xumbo - Associação para a Promoção da Música e Dança, criou a AJUDADA, uma rede informal de ajuda: empréstimo de carros e partilha de boleias, empréstimo de computadores, instrumentos. Mas à caixa de e-mail e ao telefone da AJUDADA não chegam pedidos de ajuda, mas de informação. É Joana Oliveira quem responde aos contactos, às vezes zangados e impacientes dos lesados. “A maior parte das pessoas conseguiu resolver as suas questões logísticas temporariamente”, explica. Restou o imbróglio com as seguradoras e a tentativa de quem perdeu tudo conseguir recuperar alguma coisa.
Joana continua a trabalhar mas também está à espera que a sua situação se resolva: o seu carro foi um dos atingidos. É o primeiro ano que integra a equipa do Andanças, uma edição “bastante intensa e pouco usual, mas não há muito a fazer quanto a isso”.
Ao PÚBLICO, Catarina Serrazina, responsável pela comunicação e produção da Pé de Xumbo, garante que estão focados no apoio aos lesados: “Temos estado a fazer um contacto personalizado a todas as pessoas que perderam o carro no festival. Cada contacto é uma história diferente e uma forma diferente de encarar a situação. Há pessoas que estão muito zangadas. Não projectam isso necessariamente na organização, mas a verdade é que perderam um bem”, afirma. Fonte da Polícia Judiciária indicou à agência Lusa que o relatório de investigação já foi enviado para o Ministério Público. Catarina Serrazina acredita que poderá haver desenvolvimentos em breve: “O que nos disseram ainda na altura do festival é que, em princípio, o Ministério Público se pronunciaria na segunda quinzena de Setembro”, afirmou ao PÚBLICO.
O seguro do festival, da CA – Caixa Agrícola, cobre apenas 100 mil euros para 300 carros ardidos, avançou o Jornal de Notícias. Segundo o PÚBLICO apurou, a ignição terá ocorrido na vegetação que circundava o parque e só depois se propagou aos carros, o que deixa os lesados com menos opções. “Mesmo pessoas que foram indemnizadas ficaram com muitos problemas”, conta Ricardo Mexia. “Conheço pessoas que tinham instrumentos nos carros, e isso às vezes valia mais do que o próprio veículo”, revela o médico.
Cristina Gonçalves faz parte do grupo de cerca de 100 lesados que tinham seguro contra todos os riscos. “O carro era novo, obrigam a que assim seja”, explica. Mas o valor do seguro foi feito abaixo do valor do carro. “Não estamos iludidos, vamos perder dinheiro”, desabafa. “Passado um mês o nosso carro ainda continua lá. Só podemos abater o carro e anular a matrícula depois de estar pago na totalidade. Para tratarmos disso temos de ter o dinheiro do seguro”, afirma. Catarina também ainda não desistiu de reaver o valor que tinha em bens no interior do carro: quase 200 euros em maquilhagem, que usa nos espectáculos ao vivo; um iPad, um relógio e uns óculos; toda a roupa (sua e do namorado) de Verão, já que se preparavam para 3 semanas em França, onde também iriam actuar em dois festivais semelhantes ao Andanças e onde iriam tentar vender discos das suas bandas (teriam cerca de 1000 euros só em discos dentro do carro).
Cristina não sabia que num carro podia arder tudo. Recorda os “rios de alumínio” que se viam junto aos carros e as quatro horas passadas numa fila para, no dia do incêndio, darem conta do que perderam à GNR. Os pais de Cristina foram buscá-los nessa mesma noite. Partiram depois para França no carro que a mãe lhes emprestou, para que o azar parasse por ali e pudessem actuar. Mas não parou: o carro avariou entre um festival e outro, e tiveram de regressar de comboio a Portugal, com os instrumentos às costas. Cristina, que diz já ter chorado tudo o que havia para chorar, às vezes ainda se emociona.
João Lopes não chegou a ir até ao parque de estacionamento após o incêndio, àquele a que chama o “perímetro a preto e branco no meio da cor do Alentejo”. Foram os amigos que registaram em fotografia o que restou da moto e lhe fizeram chegar um pequeno saco transparente com restos de alumínio derretido. João já pensou ir à Wikipédia ler sobre processos de perda, porque, diz ele, passou por todas as fases: “Muito zangado, muito frustrado, muito apreensivo. Inicialmente tudo ao mesmo tempo, agora é episódico”, conta. Neste momento está na fase “sonhadora”, de pensar no que vai fazer num futuro próximo. A moto - que tinha seguro contra terceiros - já foi para abate. João cancelou a matrícula e a Via Verde. Sabe que se trabalhar um determinado número de horas poderá substituir a moto que perdeu. “Já fazer uma música e escrevê-la em partitura ou fazer um desenho, esse momento em que se fixa uma ideia, é sempre fugaz. É um prejuízo literalmente incalculável”.