A cidade, berço da crise, berço das soluções

Reabilitação urbana, emprego, mobilidade e eliminação de fronteiras físicas e sociais. Receitas para uma Europa de cidades, com menos tensões

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As cidades, espaços de oportunidades, são também um caldo de tensões que urge resolver, como forma de prevenção das bolsas de exclusão Miguel Madeira
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Arte urbana no Porto Diogo Batista

Podemos atacar o problema do terrorismo com requalificação urbana? A pergunta feita a uma arquitecta e dois geógrafos portugueses e a um especialista em políticas públicas inglês, que dirige uma rede europeia de cidades na área do desenvolvimento urbano, tem respostas várias, mas muitos pontos de aproximação. Desde logo pela forma como Ana Fernandes, Álvaro Domingues, João seixas ou Haroon Saad evitam a associação entre terrorismo e periferias. Mas também na aceitação de que as cidades, espaços de oportunidades, são também um caldo de tensões que urge resolver, como forma de prevenção das bolsas de exclusão que, definidas ou não num território, têm sido fonte de recrutamento de jovens por parte de grupos radicais.

Os subúrbios de Paris e um bairro no centro de Bruxelas surgiram nos últimos meses associados à ameaça terrorista. Isolados da “cidade” (mesmo que rodeados por ela, como na capital belga) e, muitas vezes, das próprias instituições públicas, as periferias urbanas e sociais estão há muito identificadas como uma fonte de problemas clássicos (insucesso escolar, delinquência juvenil, tráfico de droga, e desemprego ou subemprego), a que se junta agora, no caso de alguns núcleos e países, uma alegada ameaça terrorista. Com reservas decorrentes do pouco que ainda dela se sabe, a proposta do primeiro ministro António Costa é aplaudida pelo facto de tentar recentrar a discussão europeia nos seus espaços urbanos  e nos 80% de europeus que aí vivem, como nota João seixas.  

“Isto não é todo um disparate. Toca numa questão que na actual crise europeia é fundamentalíssima: Vocês na União Europeia tratam de finanças e de bancos. E que mais fazem? – poderíamos perguntar. Mudar o foco, é bom, depois logo veremos como se faz”, afirma o geógrafo Álvaro Domingues. “Ouvir falar em luta contra processos de segregação e exclusão, ouvir falar em palavras positivas, como integração do clandestino, do outro, é regressar ao valor europeu fundamental” diz o docente da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto que, entre múltiplas tarefas, lecciona, com a arquitecta Ana Fernandes, uma cadeira de Mestrado que aponta a atenção para a Urbanização da Pobreza.

João Seixas elogia também a perspectiva de uma “política de desenvolvimento e a ideia de futuro” que identifica no pouco que sabe desta proposta do primeiro-ministro, embora não considere que as políticas urbanas estejam subvalorizadas na política europeia. Consultor da Comissão para esta área, o docente da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, nota que esta tema tem sido cada vez mais discutido em todos os areópagos, e que 5% de todo os fundos FEDER, dedicados ao desenvolvimento regional, destinam-se a investimentos em espaços urbanos. Mas admite que esta seja uma área que ainda não foi colocada no seu legítimo lugar.  

Haroon Saad, director da – Luden – Local Urban Development European Network considera que o assunto está, sim, na agenda europeia, mas não ainda de uma forma séria, merecendo muito mais do que esses 5% na sua perspectiva. Critica inclusivamente que os 315 mil milhões previstos no Plano Junker tenham sido disseminados por vários tipos de investimento (para estimular o crescimento da economia), em vez de sere, direccionados, por exemplo, para políticas urbanas.  “Com a questão da crise gerou-se um momentum, mas nem por isso foram canalisadas as verbas necessárias para as tarefas que temos pela frente”, diz este inglês de origem paquistanesa que trabalhou as questões da integração em várias cidades europeias antes de se estabecer em Bruxelas onde coordena esta rede informal de cidades que acompanhou de perto o projecto dos Bairros Críticos, que incidiu sobre bairros no Porto, na Amadora e na Moita.

Segundo Saad, um estudo recente, encomendado pelo Parlamento Europeu apontava ser necessário investir quase 295 mil milhões de euros (a preços de 2011) na reabilitação de todo o parque de habitação social da EU, e que esse investimento seria recuperável em apenas 18 meses. Por via da diminuição da criminalidade, da melhoria das condições de saúde, do sucesso escolar, exemplifica.  “Mas quem investe nisto? O sector privado?” – questiona o director da Luden. “O primeiro-ministro português faz bem em levantar esta questão. Portugal está preso aos compromissos do défice público e não tem recursos para levar a cabo esta tarefa", conclui.

Este especialista em políticas públicas afirma que tem de haver, de facto, uma estratégia europeia, feita com continuidade, a longo prazo e para lá dos ciclos eleitorais”, assinala, apontando o exemplo de Barcelona que, já este século, e numa década, investiu 1,3 mil milhões de euros na reabilitação dos seus bairros. “Há vários casos, em pequena escala”, que mostram o efeito prático disto nas cidades” diz, contrapondo, a estes, exemplos como o de Sheffield em que, por detrás de uma reabilitação do edificado, pela atracção de serviços como hóteis e bares, se mantiveram no território bolsas de pobreza, agora invisíveis”.  

Saad, Seixas e Domingues partilham a perspectiva de que a crise económica estilhaçou os espaços urbanos. O geógrafo da UNL considera que a crise, que teve na sua génese nas cidades, por via da bolha de crédito associada à desregulação do plaeamento urbano,  atingiu as franjas mais frágeis, a classe média e os desfavorecidos que habitam essas “periferias sociais e urbanas”, e que a vaga de austeridade que, supostamente, serviria para resolver essa crise, voltou a recair sobre a mesma camada da população. Que, exemplifica Seixas, para além de ter perdido o emprego, viu aumentar o preço de bens e serviços essenciais, como os transportes, com implicações, neste caso, na sua mobilidade.

O que aconteceu em Portugal foi vivido, com nuances no modo e na intensidade, noutros países. Como lembra Álvaro Domingues, a Europa tem algumas décadas de experiência de políticas de alojamento, associados a serviços públicos, como forma de integração de comunidades migrantes. Mas nota que as sementes do ódio, que, no caso francês, exemplifica, estavam antigamente associadas ao “violento processo de descolonização”da Argélia, por exemplo, têm agora motivações e uma geografia disseminadas. “E isso aumentou a confusão. Os elementos perigosos numa comunidade são a face visível de algo que está a milhares de quilómetros dali”, considera.

Ana Fernandes alerta por isso para o risco da associação entre periferias e terrorismo.  Ela “pode ser perigosa ou delicada se não for enquadrada. Há um discurso que raramente é desmontado de associação do islão ao Terrorismo. E se há alguns actos que podem ser associados à radicalização de pessoas, ao sentimento de rejeição e a lacunas na inclusão de emigrantes, por outro lado não se pode culpar toda a comunidade (que ainda por cima é muito diversa), por estes comportamentos “. Outra ponto a ter em conta, alerta, é que  “a questão da inclusão é quase sempre tratada unilateralmente,  quando exigiria alguma reciprocidade. A partir do momento em que um emigrante sinta que a sua cultura é respeitada também está muito mais aberto a essa inclusão.

Haroon Saad, inglês de origem paquistanesa,  acredita que a discussão sobre as identidades nacionais vai deixar se colocar, pelo menos como a escutamos hoje, dentro de duas ou três gerações. “A diversidade deve ser encarada como um valor não sempre como problema”, insiste também Ana almeida, alertando que “a regeneração das periferias é uma receita dos anos 80, e será apenas um placebo, se não for feita de forma diferente. E essa diferença passa por ajudar a mudar não apenas o espaço geográfico mas o espaço social Os imigrantes não podem estar circunscritos a uma periferia e a uma classe social. É importante dar oportunidades de emprego que não sejam apenas pouco qualificados, e dar visibilidade a elementos dessas comunidades noutras profissões e nos organismos de representação.

Seixas e Saad insistem muito que as novas políticas de regeneração urbana devem estar centradas nas pessoas, com a reabilitação do edificado e dos espaços públicos a ser colocada ao serviço da sua auto-estima, da sua integração social. Que se faz por via da reciprocidade de que fala Ana Fernandes mas também pelo acesso ao emprego mais qualificado e à quebra das situações de isolamento físico e social. O inglês coloca muito a tónica nos investimentos na conectividade, que tanto podem ser as redes wi-fi como o sistema de transporte público acessível.

O desafio passa por encontrar os recursos para este investimento num momento em que o Estado Providência das décadas do crescimento foi, segundo Álvaro Domingues, substituído por um Estado diminuído, numa era dominada pelo neoliberalismo, e em que a soberania dos países foi parcialmente transferida para sistemas difusos, como a própria União Europeia, que neste preciso momento discute a sua identidade enquanto bloco. “Tudo muda muito rapidamente. Estamos num sistema caótico e temos uma certa dificuldade em pegar em racionalidades complexas. Dá-nos mais jeito um bode expiatório do que uma explicação. Este tema vive muito disso. E é muito perigoso trocar explicações por bodes expiatórios, porque o assunto fica logo envenenado”, avisa o geógrafo. 

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