Pode o Presidente-sol vir a ser um bom pneu de chuva?
Em seis meses de mandato, Marcelo Rebelo de Sousa reforçou os seus níveis de popularidade. Mas ser tão popular tem riscos. Há quem fale em populismo e quem tema que se torne mesmo num factor de crise política…
Há seis meses, quando tomou posse, Marcelo Rebelo de Sousa teve o efeito imediato de fazer disparar a popularidade da Presidência da República: a avaliação positiva desta instituição saltou de imediato de menos de 27% (em Março) para 68% (em Abril), segundo o barómetro mensal da Eurosondagem para a SIC e o "Expresso". De então para cá, conseguiu ainda reforçar esta percepção, com ligeiras alterações. Os últimos dados conhecidos são de Julho e concedem-lhe 68,6% de avaliação positiva contra 13,1% de avaliação negativa, muito longe dos 40,8% com que Cavaco Silva saiu de Belém.
Falar de Marcelo Presidente é hoje - ao fim de seis meses de mandato para o qual foi eleito com 52% dos votos - falar sobretudo da sua popularidade, para a qual o actual inquilino de Belém trabalha diariamente. Mas também tem riscos, como alertam os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO. Poderá o Presidente-sol ser um bom pneu de chuva, quando houver uma crise política? Ou poderá tornar-se ele próprio num factor de perturbação do sistema?
Numa coisa, os constitucionalistas, antigos assessores presidenciais e o cientista político que consultámos estão de acordo: Marcelo Rebelo de Sousa está a imprimir um estilo novo em Belém, em grande parte por contraste com o seu antecessor, mas também por ser exactamente como é. “Marcelo põe o Presidente a funcionar como ele próprio funciona e não o contrário”, nas palavras de Jorge Reis Novais, constitucionalista e antigo assessor do Presidente Jorge Sampaio.
Mas se esse estilo e a multiplicação das iniciativas mediáticas inovadoras são atribuídas às características e experiência próprias da personagem, também se pode admitir uma interpretação alternativa, diz Carlos Gaspar, antigo assessor de Mário Soares e Jorge Sampaio. “Por um lado, a campanha presidencial permanente dos últimos seis meses é uma forma de o Presidente compensar a ausência de apoio dos principais partidos - uma condição que o separa dos seus antecessores”. Mas por outro, acrescenta, “a sua ‘teoria dos afectos’ serve para despolitizar uma relação directa entre o Presidente da República e o ‘povo’, sem mediação das elites políticas e partidárias, uma estratégia típica dos políticos populistas, cuja hora está a chegar nas democracias ocidentais”.
Esta carga populista é desdramatizada pelo constitucionalista Tiago Duarte, que prefere ver neste estilo “alguma coisa de regresso ao que era a ideia original do Presidente no sistema constitucional português, que tinha subjacente a memória da candidatura de Humberto Delgado de galvanização da sociedade portuguesa”. Para o também advogado da PLMJ, “é um regresso à ideia originária do Presidente distanciado dos partidos e ligado ao povo, por isso a candidatura é unipessoal, por voto directo e com maioria absoluta”.
Tiago Duarte recorda que todos os Presidentes da democracia têm desejado ser de todos os portugueses – “foi um slogan da candidatura de Ramalho Eanes”, lembra -, mas esta ideia de “abrangência e representação” não está na Constituição. “Nada disto está escrito, não está escrito que o Presidente tenha de ser de todos os portugueses, nem mesmo que não possa ser presidente de um partido político”, acrescenta o professor de Ciência Política António Costa Pinto.
Embora Marcelo tenha dispensado, logo na campanha eleitoral, qualquer apoio do PSD, partido a que já presidiu, também não seguiu o exemplo de Mário Soares ou de Cavaco Silva que, ao serem eleitos, entregaram o cartão de militante. Marcelo – que usa frequentes metáforas para dizer que dá tanta atenção à direita como à esquerda e se mantém ao centro -, “continua com a grande preocupação de alargar a sua base de apoio”, frisa Costa Pinto.
Mas para quê? Para reforçar a sua legitimidade perante uma futura crise política? “O que queremos de um pneu é que ele funcione bem na chuva”, metaforiza Tiago Duarte. “A grande questão é saber se, quando for preciso tomar decisões - saber se convoca eleições -, Marcelo vai tomá-las, mesmo que desafie uma parte importante do eleitorado, ou se vai preferir não o fazer para não desbaratar a sua popularidade”. Continuando a metáfora: “Será que vai preferir ser sempre o pneu de sol?”
Risco de perturbação
Que atitude terá o Presidente perante a eclosão de uma crise, ninguém arrisca prever. Mas Reis Novais teme que Marcelo venha a tornar-se, ele próprio, num perturbador do funcionamento do sistema, devido à sua “presença mediática excessiva, sem se distanciar da anterior função de comentador”. O professor de Direito Constitucional considera que esta actuação de Marcelo “promove alguma confusão entre as funções do Presidente e do Governo, pela proximidade e apoio que dá ao Governo, pela forma como se mete nos problemas do dia-a-dia”.
Em seu entender, isto “retira-lhe a equidistância que se exige ao Presidente: hoje está com o Governo, amanhã pode não estar”. E por isso, “o risco de perturbação é grande, sobretudo em alturas de crise, até porque pode ser ele a provocar a crise”. Porque, explica, quando o Presidente diz que determinada medida do executivo é positiva ou negativa, “pode estar a perturbar o equilíbrio da solução governativa”.
“O papel interventivo do Presidente é positivo, o problema é o excesso de mediatismo. O meu receio é que a intervenção excessiva não seja ela própria um factor de crise e seja ele a provocar a crise”, insiste.
António Costa Pinto discorda deste cenário. Prefere falar de um novo estilo político, não apenas em relação à presença mediática, mas também ao nível da intervenção política no espaço público: "Dá opiniões, faz avisos". “Este novo estilo é a construção de um modelo mais intervencionista do semipresidencialismo, mas tudo isso é normal num sistema semipresidencialista, não é nenhuma disfunção. O semipresidencialismo tem uma grande plasticidade, é maleável, pode cobrir muitas situações diferentes”, sublinha.
Para este politólogo, o aumento e diminuição de poderes não formais do Presidente “é um campo muito grande” e permite muita margem de manobra. “Se houvesse um colapso do sistema partidário, perante uma indefinição de resultados eleitorais como está a acontecer em Espanha, o semipresidencialismo tem uma plasticidade muito maior que os sistemas parlamentares”, sublinha, apontando Belém como uma válvula de segurança do sistema.
Mas até lá, e além da omnipresença no espaço público, há todo um trabalho de prevenção que cabe ao Presidente. “A natureza da função presidencial na democracia portuguesa resume-se na capacidade do Presidente para antecipar e resolver as crises políticas”, sublinha Carlos Gaspar. Marcelo tem uma agenda não pública de contactos frequentes com os partidos, os sindicatos e as instituições, da qual pouco ou nada se sabe. Mas Costa Pinto desconfia que é muito maior do que se pensa: “Dentro da informalidade, parece-me que a construção da proximidade política com as restantes instituições políticas e sociais é muito maior do que anteriormente”.