A bienal de São Paulo é agora um jardim
Uma horta não é uma obra de arte. E não há declarações bombásticas sobre a cultura indígena. São os artistas portugueses à volta com o fim do mundo na exposição de artes plásticas.
O mais natural numa bienal cujo tema passa pela ecologia é que olhe para o que está à volta. Quando a Bienal de São Paulo ocupa o Pavilhão Ciccillo Matarazzo, desenhado pelo arquitecto Oscar Niemeyer nos anos 50, o que está à volta é o Parque Ibirapuera. A 32.ª edição da bienal, que esta quarta-feira abre ao público, está construída como um jardim, onde não há capítulos mas um diálogo orgânico entre os 81 artistas seleccionados.
Quem faz o percurso pensado pelos cinco comissários, liderados pelo alemão Jochen Volz, encontra logo à entrada do pavilhão as esculturas de Frans Krajcberg, um polaco naturalizado brasileiro com uma obra radical ligada à defesa do planeta e que vive recluso no extremo sul da Bahia numa casa construída numa árvore a sete metros do chão. Deparamo-nos com uma floresta de madeira calcinada, transformada pelo artista em esculturas coloridas com pigmentos naturais de grande dimensão, que parece continuar o jardim lá de fora entre as paredes de vidro do pavilhão modernista.
Logo a seguir, está a oca, de Bené Fonteles, que quer com o seu tecto de palha e paredes de taipa cruzar diferentes matrizes construtivas do Brasil, como as habitações indígenas e caboclas ou ainda o espaço do terreiro, evocadas no título da peça Ágora: OcaTaperaTerreiro. Não se trata de dar uma receita, de separar ou categorizar as culturas que compõem o Brasil, mas juntá-las sem hierarquias, como o popular e o erudito, através de uma programação que permite organizar debates para 80 pessoas no interior da casa “e adiar o fim do mundo”.
As cores da construção em terra regressam com o labirinto orgânico da peruana Rita Ponce de León, antes de chegarmos ao centro do pavilhão, onde o paralelepípedo sóbrio de Niemeyer começa a dar lugar a espaços mais plásticos. É aqui, no emblemático espaço com triplo pé-direito entre as rampas do pavilhão, que a brasileira Lais Myrrha, com a obra Dois Pesos e Duas Medidas, põe em contraste duas maneiras de construir, através de duas torres que atingem oito metros de altura, uma de telhas, tijolos, betão, ferros e canos PVC e outra de elementos naturais usados nas estruturas indígenas. É uma reflexão sobre como a arquitectura moderna brasileira, que por vezes incorpora elementos vernaculares na sua linguagem, não conseguiu fazer o mesmo em relação às técnicas de construção.
Explosão de plantas
Por esta altura, do lado de fora, na Praça das Bandeiras, encontramos a peça da portuguesa Carla Filipe, que ilustra na perfeição a vontade da equipa de curadoria de continuar a construir o parque como um espaço público, não tivesse Jochen Volz uma larga experiência em trabalhar esta permeabilidade, depois de vários anos como curador do Instituto Inhotim, em Minas Gerais, considerado o maior centro de arte contemporânea ao ar livre da América Latina e agora dirigido pela portuguesa Marta Mestre. São vários os projectos artísticos encomendados para o parque, disse na apresentação Volz, que explicou que a exposição intitulada Incerteza Viva “se vê como uma extensão do parque para dentro do pavilhão”.
Carla Filipe construiu uma horta com feijão-boi, espinafre-da-índia, funcho, capuchinha, vinagreira, saião-azul, urtiga-brava, beldroega, plantas de Portugal e do Brasil, espécies em vias de extinção, vegetais comestíveis pouco conhecidos e outras plantas encontradas ali mesmo à volta. Ela quer que este site-specific se transforme numa explosão de plantas ao longo da bienal, num trabalho encomendado pela curadoria da exposição e que começou a tomar forma em Junho.
As hortas ocupam quase uma centena de canteiros improvisados em pneus gigantes, bidons de metal e plástico ou círculos de betão usados nas condutas. O trabalho intitula-se Migração, Exclusão e Resistência e dá visibilidade aos chamados PANCS, produtos alimentícios não convencionais.
“Uma horta não é uma obra de arte, como um muro não é uma obra de arte. Mas se eu colocar um muro dentro do espaço expositivo vai ter uma leitura totalmente diferente do que se estivesse no seu contexto como divisão de propriedade.” Carla Fillipe explica que neste caso não se trata de uma apropriação, mas de uma horta pensada para o espaço, seguindo a disposição das plantas um desenho um pouco mais caótico do que as hortas tradicionais, em concordância com a arquitectura do espaço e do parque.
Este trabalho amplia uma pesquisa que começa em 2006 com a construção de hortas em ambientes urbanos, propondo um uso colectivo do espaço privado ou a apropriação de espaços públicos destinados a outros fins. Desta forma, explica a tabela da peça, “questiona a noção de propriedade e amplia a noção de sobrevivência”.
O curador João Laia, que comissaria uma exposição na galeria paulista Jaqueline Martins e vive em Londres, acha a horta de Carla Filipe “fantástica e supercoerente com o trabalho anterior”. “Mas expande um bocadinho o trabalho dela, que tem sido em torno da memória e mais auto-biográfico.”
O trabalho de Carla Filipe passa também por uma colaboração com o artista brasileiro Jorge Menna Barreto, que abriu um restaurante-instalação no interior da bienal com produtos orgânicos, e que quer mostrar como a alimentação molda a paisagem em que vivemos. “Ele já trabalhou com PANCS e vai usar produtos da minha horta. Foi acordado desde cedo, o que facilitou a minha preocupação sobre o destino dos produtos, uma vez que não queria que a minha horta tivesse uma finalidade contemplativa”, explica Carla Filipe.
Se algumas destas plantas já tiveram uma presença mais forte na nossa gastronomia, outras nunca tiveram um papel relevante: “Algumas encontramos facilmente na rua ou nos passeios e não damos conta da sua função alimentar.” São forças espontâneas, que numa interpretação mais política podem ser consideradas como metáforas da vida nas cidades, como símbolos de resistência.
João Laia ainda não viu todas as obras dos artistas portugueses, mas também gostou muito do filme Gozolândia, de Priscila Fernandes, uma artista que vive em Roterdão. “É uma actualização do contexto físico da bienal feita de uma maneira muito poética.” Inteiramente rodado no Parque Ibirapuera, questiona o espaço do lazer e da arte, percorrendo imagens da história da arte, mas também de um parque onde a actividade física é praticada de forma intensa.
Os artistas portugueses presentes na bienal aumentaram de um para cinco em relação à última exposição. Além de Filipe e Fernandes, estão ainda presentes Gabriel Abrantes e Grada Kilomba, além de um nome histórico como Lourdes Castro. O curador principal da bienal, Jochen Volz, diz que a selecção “aconteceu totalmente de uma forma natural”. Fez juntamente com Lars Bang Larsen, outro dos curadores, uma viagem de pesquisa em Portugal no Verão do ano passado, porque “estavam muito curiosos em relação à produção dos artistas portugueses”.
“Não foi uma estratégia por acharmos que a bienal precisasse de uma forte representação de artistas portugueses. Mas a participação é um índice de uma produção extremamente forte que encontrámos de artistas contemporâneos em Portugal.”
Grada Kilomba, que vive e trabalha em Berlim, apresenta uma vídeo-instalação e uma performance. A escritora, teórica e artista, cuja família do lado materno tem origem em São Tomé, reflecte sobre a necessidade de descolonizar o conhecimento, numa prática que anda entre a academia e a arte. “O passado colonial é memorizado de uma forma que não consegue ser esquecido. Às vezes eu preferia não me lembrar. Mas a teoria da memória é, na realidade, uma teoria do esquecimento”, escreve a propósito da performance Ilusões, que conta a história da escrava Anastácia.
Lourdes Castro, que Volz descobriu na exposição que a Fundação Gulbenkian dedicou recentemente aos seus livros de artista, é apresentada em duas salas amplas. Está lá Um Outro Livro Vermelho, feito em colaboração com Manuel Zimbro nos anos 1970, e mais de 40 desenhos da série Sombras à Volta de um Centro. Como comenta Paulo Pires do Vale, comissário da exposição da Gulbenkian, Volz ficou tão “encantado” com o trabalho que pediu para ver mais trabalhos da artista. “A presença de Lourdes é muito forte, quer em termos espaciais, quer em termos numéricos. São muitas obras de uma artista só.”
Comédia indígena
Gabriel Abrantes esteve mais de um mês no Mato Grosso, dentro do parque indígena do Xingu, a filmar com o apoio da bienal, mas também de Serralves — onde a bienal vai ser mostrada em 2017 — e ainda da Inelcom, uma colecção de Madrid. O filme, intitulado Os Humores Artificiais, mistura a estética de Hollywood com a do documentário. É pouco habitual, como nos explica o realizador, ver no meio do Xingu uma banda sonora que parece saída de um filme de Natal. Há também referências a 2001, Odisseia no Espaço, ao BB-8 de Star Wars, porque afinal trata-se da história de amor entre uma jovem indígena que quer ser comediante e um robô.
“Todos os meus filmes têm uma atitude política bastante camuflada e indirecta. Não vou dizer: a cultura contemporânea está a invadir o espaço indígena”, explica. O que lhe interessava era explorar as formas de comédia indígena. “Está só muito levemente no filme”, mas há-de reaparecer em próximos trabalhos. Em Março, Gabriel Abrantes, que transita entre as salas de cinema e os espaços expositivos, vai estrear a primeira longa-metragem, intitulada Em Busca da Felicidade.
No texto do catálogo, Jochen Volz explica que o projecto da bienal começou em 2014, “um ano que assistiu à publicação de uma quantidade extraordinariamente grande de livros e artigos científicos anunciando o fim do mundo como o conhecemos”. Os biólogos diziam que enfrentávamos a chamada sexta extinção, resultado de uma população crescente de seres humanos exigentes e dotados de tecnologias, e a ascensão do termo "antropoceno" alcançou o clímax em várias disciplinas.
Mas apesar da bienal ter nascido neste contexto, “os curadores não foram à procura de um mundo pós-apocalíptico”, continua o curador neste catálogo que também tem um texto do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. A investigação para Incerteza Viva foi antes em busca de "o pensamento cosmológico, da inteligência ambiental e colectiva e da ecologia sistémica e natural”.
Esta quarta-feira, o ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, vai inaugurar no Consulado-Geral de Portugal uma exposição com os mesmos cinco artistas da bienal, intitulada O Futuro Será Uma Réplica. Num pequeno-almoço com o PÚBLICO esta terça-feira, depois de na véspera ter estado na bienal com o primeiro-ministro numa visita privada, Castro Mendes explicou que o ideal seria ter centros culturais no Rio e em São Paulo, quando lhe pedimos para perspectivar a presença da cultura portuguesa no Brasil. Até eles chegarem, “temos que introduzir a cultura portuguesa onde ela acontece e evitar o gueto”. “Esta exposição é suscitada pela bienal. O movimento é pôr a arte portuguesa junto dos seus pares e ao lado criar um espaço, como este no consulado, onde se pode ver as obras portuguesas no seu conjunto.”
O PÚBLICO viajou a convite da Fundação Bienal de São Paulo