Com as imagens do cinema mudo na cabeça
Pensar a preto e branco não é um problema para João Ribeiro, director de fotografia de Cartas da Guerra, é o que é natural para ele: “Eu vejo mundo a preto e branco, deve ser por ter crescido a ver aqueles livros de arte antigos onde a história da pintura vinha reproduzida a preto e branco".
A primeira coisa que João Ribeiro, director de fotografia de Cartas da Guerra, faz depois de ler um guião é começar aquilo a que ele chama a “aproximação à cabeça do realizador”. Para começar essa aproximação, que passa por um diálogo fundado em imagens, compõe um pequeno album recheado de stills de filmes, fotografias, reproduções de pintura. Está-nos a mostrar o album que preparou para o trabalho em Cartas da Guerra e para a aproximação à cabeça de Ivo Ferreira quando as páginas se abrem sobre fotos de filmes de Douglas Sirk e Michael Powell. E João Ribeiro exclama: “Russell Metty [operador de vários Sirks], Jack Cardiff [operador de vários Powells]… É destes tipos que eu gosto: a luz está sempre toda no actor, o décor que não interessa fica na sombra…”
Podemos ver alguma coisa desta admiração no trabalho de imagem de Cartas da Guerra. Por exemplo naquela cena em que a voz off debita uma carta de amor e a planificação saltita entre os corpos de Miguel Nunes e Margarida Vila-Nova, os amantes separados, filmados como se fossem focos de luz na obscuridade do restante espaço do plano. “Para mim a prioridade absoluta é o actor”, diz João, “e por princípio o actor é o ponto do plano com a luz mais alta. Claro que a ideia pode ser, por exemplo, deixar o actor numa silhueta. Com certeza que pode. Mas o ponto de partida é este. Aliás, é como trato uma paisagem: se houver uma árvore, ilumino-a como se estivesse a iluminar uma pessoa”. Mais atrás ainda do que Metty ou Cardiff, é a lição da fotografia do cinema mudo que ainda mais impressiona João Ribeiro. “Nas coisas de que gosto mesmo, Murnau, Lang, Griffith, Stroheim, a luz ilumina as pessoas e é a luz das pessoas que domina o espaço. Hoje, porque se faz filmes com pouco tempo e pouco dinheiro, há uma tendência para iluminar o espaço totalmente e dar aos actores uma absoluta liberdade lá dentro – simplificando, seria o modelo de iluminação da nouvelle vague. Eu gosto de começar pelas pessoas e de ter outra precisão. Como no cinema mudo. Aliás, quando estou a filmar imagino sempre um filme mudo – excepto se tratar de um documentário, porque aí é o som que me ajuda a ver”.
Quer isso dizer que, no momento de filmar, a estrutura narrativa – a locução da voz off, como no caso de Cartas da Guerra, onde esse recurso é central – é um dado esquecível? “Não pode é ser um dado castrador, tem que ser algo interiorizado ao ponto de já não pensarmos nisso. Como aquele pianista que ao interpretar uma peça que conhece e domina na perfeição diz que a preocupação já não é a peça mas a compreensão da cabeça do compositor. A partir do momento em que consigo estar dentro da cabeça do Ivo e há essa comunhão, posso esquecer esses detalhes porque estão interiorizados. Aliás, falámos explicitamente sobre isso, e entendemos que o som off devia funcionar como um contracampo do plano filmado. Como aquela ideia do Sokurov, dum filme que possa ser entendido com os olhos fechados mas também com os ouvidos fechados”.
O preto e branco de Cartas da Guerra foi uma decisão tomada na pós-produção, mas João entusiasma-se a dizer – com provas abundantes no tal pequeno album que nos mostrou – que a sua primeira “visão” do filme era já, predominantemente, uma visão a preto e branco. “Trata-se de criar uma distância”, diz, “de evitar essa coisa sempre muito perigosa que é filmar num estado de fascínio”. Por Àfrica, neste caso. “Eu já fiz muitos filmes em África, ficções e documentários, e há uma coisa que a gente já sabe: vão-nos sempre pedir que filmemos um nascer do sol, um por do sol, um mercado e uma missa…”. Aqui, a decisão consciente era fugir do fascínio e dos clichés das representações africanas, e “mesmo durante a rodagem, naqueles princípios de etalonagem que fazíamos todos os dias, as imagens coloridas tendiam sempre para um certo monocromatismo, como se estivéssemos a fugir da Àfrica que se espera ver”.
Pensar a preto e branco não é um problema para João Ribeiro, bem pelo contrário é o que é natural para ele: “Eu vejo mundo a preto e branco, deve ser por ter crescido a ver aqueles livros de arte antigos onde a história da pintura vinha reproduzida a preto e branco”. Mas o preto e branco de Cartas da Guerra é um preto e branco muito definido e contrastado, muito moderno, dir-se-ia. João quis evitar a nostalgia e o mimetismo de época – “nem fui rever imagens de arquivo da guerra”. A principal inspiração que assume, e que até se notará nalguns planos do filme (logo no de abertura), vem da fotografia: “o trabalho do Edward Steichen, um dos meus fotógrafos preferidos, e aquelas imagens que ele captou nos porta-aviões durante a II Guerra”. E apesar de concordar que a fotografia de Cartas recusa a nostalgia, também não se deixa espantar pela modernidade tecnológica: “Se filmasse em película fazia uma luz diferente? Não! O resultado seria diferente, porque a textura digital é diferente, mas o processo seria o mesmo”. Interessa-lhe discutir “texturas”, critica a tendência “para um híper-realismo patético” que a crescente definição das câmaras digitais (“ah, uma câmara 4K e tal, isso não me entusiasma nada”) está a instalar como regra uniformizadora da iluminação e da textura das imagens. E, mesmo que apenas na pós-produção, considera, o trabalho sobre o preto e branco é “mais simples” porque vai ao essencial. “Não há o problema das cores, do quente e do frio, tudo se resume ao contraste, toda a expressividade nasce daí e basicamente tudo se resume a uma questão: decidir se vamos ficar mais próximos do branco ou mais próximos do preto, e a partir daí definir um padrão para todo o filme”.