Um editor de frente e de perfil
André Jorge, o editor da Cotovia, que morreu esta sexta-feira, foi uma figura marcante na história recente da edição em Portugal. A editora que ele criou com o seu irmão atravessou, com um programa que revela uma enorme resistência e teimosia, as dificuldades e contingências da vida editorial.
Ao André Jorge, fundador dos Livros Cotovia, não se ajusta com precisão nenhuma das consabidas categorias que nos servem geralmente para classificar os editores: não foi um editor à moda antiga, daqueles que concebem a editoria como uma criação autoral e quase como um género literário; não foi um moderno empreendedor no ramo secundário da indústria do livro; e também nunca foi – é bem sabido que nunca foi – qualquer coisa de intermédio, um editor assim-assim, traficante de antigos prestígios à sombra dos novos álibis culturais. Ocupou um lugar onde ninguém se acomoda, para o qual nunca reivindicou privilégios, nem excepções, nem títulos de nobreza, mas que lhe exigiu pelo menos duas coisas fundamentais: uma grandiosa obstinação e a pequena fortuna pessoal. A obstinação - outros chamar-lhe-ão teimosia - só conheceu algum esmorecimento pela debilidade física a que o cancro linfático o submeteu. Obstinado – e muitas vezes quase quixotesco, como quando prescindiu da rede de livrarias da Bertrand - foi ele também contra um outro mal que pode ser dito com a metáfora da doença: as anomalias e metástases da edição, distribuição e comercialização dos livros. Quanto à pequena fortuna pessoal, de pouco lhe valeu uma palavra de ordem de um grande editor francês, Robert Laffont, que André Jorge leu num livro de outro grande editor e autor italiano, Roberto Calasso, do qual a Cotovia publicou As Núpcias de Cadmo e Harmonia e Os Quarenta e Nove Degraus: “É preciso saber perder dinheiro”.
A Cotovia editou os seus primeiros livros em 1988. Foi fundada por dois irmãos, André Jorge e João Miguel Fernandes Jorge, com a importante presença de Joaquim Manuel Magalhães. O projecto gráfico, de feição sóbria e com um perfil bem marcado, foi de João Botelho. É aliás de Joaquim Manuel Magalhães uma nota de apresentação do primeiro número da revista As Escadas não têm Degraus, de Janeiro de 1989, com a qual a Cotovia intervinha, “sem nenhum programa de intenções” no panorama literário, com forte incidência no campo da poesia. Ao fim de dois anos, João Miguel Fernandes Jorge retirou-se e André Jorge ficou a comandar os destinos da editora. O seu programa prosseguiu concedendo um lugar de relevo aos géneros minoritários (a poesia, o teatro, o ensaio), desenhando colecções com perfis bem marcados. Numa altura em que as editoras tenderam a abandonar a ideia forte de colecção e a virar-se para a edição de títulos avulsos, a Cotovia manteve sempre uma linha editorial organizada por colecções. Assim foi com outras colecções que André Jorge e Fernanda Mira Barros (que tinha entrado para a Cotovia ainda nos últimos tempos de João Miguel Fernandes Jorge e veio a ocupar o lugar de editora, para além de companheira de André Jorge) foram criando: entre outras, a Judaica, que teve uma vida breve, e a colecção Curso Breve de Literatura Brasileira, dirigida por Abel Barros Baptista. Para além desta colecção, a literatura brasileira contemporânea e as literaturas africanas foram uma presença importante no catálogo imenso e riquíssimo da Cotovia. Procurando nichos muito minoritários e de elite, a partir de certa altura, e com a preciosa colaboração de um autor da casa, Frederico Lourenço, André Jorge começou a editar traduções de clássicos gregos e latinos. A Odisseia e a Ilíada, traduzidos por Frederico Lourenço, foram um grande empreendimento editorial da Cotovia, num momento em que a editora já lutava pela sobrevivência, numa altura em que se configurava uma forte concentração editorial. Orgulhoso do seu catálogo e obstinado como sempre, André Jorge, apesar das dificuldades, não alienou a editora porque não encontrou um comprador à altura da importância e do valor do catálogo que a Cotovia tinha criado desde o início. É difícil e triste perceber, mas as dificuldades que André Jorge teve de enfrentar podem ser medidas por este facto: uma edição de Bouvard e Pécuchet, de Flaubert, com tradução de Pedro Tamen, vendeu ao longo de quase 20 anos umas poucas centenas de exemplares.
E, no entanto, André Jorge não desistiu. A doença obrigou-o a pausas; a situação editorial obrigou-o a repensar a empresa, a fazer algumas deslocações, a rever aspectos pragmáticos, tais como os da distribuição. Ninguém mais do que ele, em Portugal, falava do “meio” com tanta eloquência e de modo tão crítico. De certa maneira, ele foi um sobrevivente de um mundo desencantado. Não é que ele olhasse para os livros com ingénuo encantamento, longe disso. Não era um cínico, mas era uma consciência crítica. Hipercrítica, até. E tinha as suas defesas contra a esterilidade intelectual e os malefícios da pose amorosa em relação aos livros e à cultura. Uma dessas defesas era a cozinha: cozinhava primorosamente e conhecia muito bem todos os ingredientes.
Como grande parte da sua geração, tinha passado pela oposição ao regime. Em Coimbra, onde fez os estudos liceais num colégio, chegou a ser preso, aos 16 anos. Frequentou o curso de Filosofia na Faculdade de Letras de Lisboa, que nunca acabou. Foi aí, na faculdade, que teve como amigos Manuel Gusmão, Joaquim Manuel Magalhães e Ruy Belo. No seu percurso político, foi co-fundador, com Nuno Teotónio Perreira, do MES (Movimento de Esquerda Socialista). O MES extinguiu-se cedo, mas não a amizade com Teotónio Pereira; André Jorge era, de resto, um grande amante de arquitectura.
Outra das suas paixões era a África, o que se traduziu na edição, pela Cotovia, de autores da literatura africana de expressão portuguesa (como exemplo, mencione-se um nome importantíssimo do catálogo: Ruy Duarte de Carvalho). Em África – na guerra, em Angola – esteve André Jorge, cumprindo o serviço militar. Foi uma experiência tão marcante que haveria de regressar à Guiné, mas como cooperante ao serviço de um governo nórdico. África foi para ele não apenas uma experiência importante, mas também um objecto de estudo.
André Jorge e a Cotovia atravessaram a história das transformações da edição, no último quarto de século, de uma maneira exemplar. Não é que seja uma história gloriosa (coisa que André Jorge jamais reivindicou), mas é uma história de teimosia e de resistência. Quando viu a morte aproximar-se, André Jorge continuou a querer salvar a editora, mesmo sabendo que não se ia salvar a si. E, no fim, os seus gestos e as suas vontades testamentárias de um agnóstico radical foram tão obstinados como a sua tarefa de editor.