Aviões russos atacam a partir do Irão selando "cooperação estratégica" na Síria
Pela primeira vez desde 1979, Teerão abre o seu território a forças estrangeiras. Base de Hamadan traz vantagens tácticas à Rússia, que reforça a sua presença no Médio Oriente
Já combatiam do mesmo lado, mas nesta terça-feira Irão e Rússia deram mais um passo na cooperação militar e no seu envolvimento na guerra da Síria – pela primeira vez, aviões russos descolaram de uma base aérea iraniana para atacar alvos do Estado Islâmico e da Frente al-Nusra (agora denominada Frente Fatah al-Sham) nas províncias de Deir Ezzor, Idlib e Alepo. Nesta cidade, que já foi a capital económica síria e é hoje palco “de um dos conflitos urbanos mais devastadores” da actualidade, os ataques aéreos redobraram de intensidade.
O uso da base de Hamadan, no Noroeste do Irão, a menos de mil quilómetros da fronteira Leste da Síria, é um passo inédito para os dois grandes aliados do regime de Bashar al-Assad. Desde que em Setembro de 2015 foi em auxílio do Presidente sírio, Moscovo não tinha ainda recorrido a um país terceiro para lançar ataques na Síria: ou usava os caças que estão estacionados na província de Latakia, no noroeste do país, ou atacava a partir do seu próprio dispositivo, tanto os navios que estão estacionados na região, como os bombardeiros sediados nas bases no Sul da Rússia.
O Ministério da Defesa russo, que divulgou imagens dos Tupolev-22M3 (bombardeiros de longo alcance) e dos Sukoi-34 (caças-bombardeiros) em acção, explicou que a base aérea na Síria não tem as dimensões necessárias para acolher aviões desta dimensão. Os observadores acrescentam que a escolha de solo iraniano traz vantagens tácticas para as forças russas, ao reduzir o tempo de voo dos bombardeiros, o que não só poupa custos como permite que os aviões transportem mais munições. Garante-lhes também uma base recuada, a salvo de eventuais ataques, quer da rebelião síria quer dos jihadistas.
Ao contrário de Latakia, Hamadan “situa-se num território aliado que a Rússia não precisa de defender”, explicou à AFP o analista militar Pavel Felgenhauer, antecipando o início de uma escalada nos ataques aéreos. Para já foi anunciada a destruição de cinco depósitos de munições, vários centros de treino e três estruturas de comando nas três províncias.
A iniciativa marca também uma nova escalada na participação russa na guerra, cinco meses depois de o Presidente Vladimir Putin ter anunciado a retirada da maior parte do contingente que enviara para a Síria, indiciando que o país está apostado em expandir a sua influência na região para lá da necessidade imediata de manter Assad no poder. Estes ataques pretendem mostrar ao mundo que a Rússia é “uma potência com dentes”, disse ao Washington Post George Sabra, membro da delegação de opositores que participou nas falhadas negociações mediadas pela ONU em Genebra. O dirigente aponta o dedo à inacção ocidental para explicar que Moscovo está a preencher o vazio criado e mostrar que “tem objectivos não apenas na Síria, mas em toda a região”.
Irão altera doutrina
O passo é ainda mais significativo para o Irão que, pela primeira vez desde a Revolução Islâmica, em 1979, autorizou forças estrangeiras a actuar no seu solo – a sua Constituição proíbe a instalação de bases estrangeiras no país, sublinha a AP, e a última presença oficial russa no país aconteceu há 70 anos. “É um grande passo político e diplomático”, disse ao Guardian Shashank Joshi, perito do Royal United Services Institute, em Londres, explicando que nas últimas décadas Teerão resistiu sempre a integrar alianças militares. Tal como fez no passado noutros conflitos da região, é um dos principais actores da guerra na Síria – para onde enviou milicianos e alguns dos mais experientes comandantes dos Guardas da Revolução –, mas nega-o oficialmente para não ser acusada de ingerência.
Mas algo mudou para que o Irão, pela voz de Ali Shamkhani, chefe do Conselho Supremo de Segurança Nacional, venha agora anunciar o que diz ser a “cooperação estratégica” com Moscovo, de quem Teerão se aproximou política e militarmente após o acordo nuclear de 2015 – em Maio, após o levantamento das sanções, a Rússia entregou-lhe o sofisticado sistema de defesa antiaérea S-300 que tinha encomendado em 2007.
Parte da explicação foi dada pelo próprio Shamkhani, ao dizer que o país não pode ficar indiferente ao ver “a Arábia Saudita investir no reforço dos terroristas e dos grupos takfiri [termo que usa para se referir aos extremistas sunitas] em vez de lutar contra a ocupação do regime sionista [Israel]”. Ambicionando o domínio regional, as duas potências (uma sunita, a outra xiita) travam lutas por procuração na Síria e no Iémen e o fim das sanções internacionais ao Irão acabou por empurrar Riad para uma intervenção mais directa, a que Teerão responde agora.
Mas Lina Khatib, directora do programa da Chatham House para o Médio Oriente, vê nesta cooperação uma consequência directa da quebra do cerco às zonas controladas pela rebelião em Alepo, “que foi muito embaraçosa para a Rússia, para o Irão e para o regime sírio”. A 17 de Julho o Exército sírio, apoiado pela aviação russa, cortou a última estrada de abastecimento ao Leste da cidade, mas no início deste mês, uma aliança encabeçada pela Al-Nusra furou o cerco pelo Sudoeste – uma das áreas onde precisamente se concentraram os ataques desta terça-feira que, segundo o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, mataram pelo menos 19 civis e 12 combatentes.
Bombas incendiárias
Zakaria Malahifi, dirigente de um grupo rebelde sediado no Leste de Alepo, disse à Reuters não saber se os bombardeiros russos participaram nos ataques à zona que, garantiu, “estão muito mais intensos” nos últimos dias. “Não há arma que não tenha sido largada sobre Alepo, sejam bombas de fragmentação, de fósforo e por aí adiante”. Um rol que a Human Rights Watch alargou nesta terça-feira, ao acusar a aviação síria de, com apoio ou conivência russa, ter largado bombas incendiárias sobre zonas residenciais de Alepo e Idlib, em pelo menos 18 ocasiões no último mês e meio.
A batalha de Alepo – decisiva tanto para a rebelião como para Assad – é ,“sem sombra de dúvidas, um dos conflitos urbanos mais devastadores da nossa época”, denunciou na segunda-feira o presidente do Comité Internacional da Cruz Vermelha, Peter Maurer, lamentando que “nada, nem ninguém, esteja a salvo” de ataques que não poupam escolas, hospitais, mercados.
Há semanas que Estados Unidos e Rússia discutem um acordo para coordenar as suas operações militares na Síria e criar condições para um cessar-fogo que permita o envio de ajuda humanitária a Alepo, tanto aos cerca de 250 mil civis quase cercados no Leste, como aos mais de um milhão que vivem nas áreas controladas pelo Governo. Para um acordo é essencial que as duas potências se entendam sobre que grupos são terroristas e devem, por isso, ser excluídos de uma trégua. Washington classifica como terroristas apenas o Estado Islâmico e a Al-Nusra (que mudou de nome ao cortar oficialmente ligações com a Al-Qaeda), excluindo os grupos rebeldes que se aliaram a ela para lutar contra o Exército sírio em Alepo, uma distinção que Moscovo repudia.