A ponte que uniu as duas margens do Tejo e mudou o país
Passaram cinco décadas desde que o primeiro carro atravessou a Ponte 25 de Abril, então Ponte Salazar. A estrutura mudou a relação entre as margens do rio e até o próprio nome acompanhou o crescimento da área metropolitana de Lisboa
Foram precisos quatro anos — mas menos seis meses do que o previsto —, para que as duas margens do Rio Tejo na zona de Lisboa se unissem e assim quebrassem uma divisão secular. Com 2,3 quilómetros de comprimento, a ponte 25 de Abril, que nasceu Ponte Salazar, veio alterar a relação entre a Margem Norte e a Margem Sul do rio e deu o nó final na ligação entre o Norte e Sul do país. Meio século e algumas alterações depois, a ponte sobre o Tejo, como era tratada antes de ser baptizada, continua a desempenhar o papel de protagonista na ligação entre as duas margens.
Num vermelho que corta o horizonte a 70 metros acima do nível da água e arrasta o olhar até ao outro lado do rio, a Ponte 25 de Abril garante a travessia diária de 150 mil veículos e 157 comboios, detalham dados oficiais mais recentes da Infra-estruturas de Portugal. Contas feitas, são cerca de 85 mil pessoas que, em média, utilizam diariamente a ponte.
Os primeiros esboços que iriam servir de inspiração à estrutura que hoje conhecemos surgiram com o engenheiro Miguel Pais, corria o ano de 1876. O anteprojecto sugeria uma ligação em ferro entre Lisboa e Montijo, mas foi a ligação com Almada que acabou por se concretizar. Localizada na parte mais estreita das duas margens, a poupança em alguns quilómetros traduziu-se também na poupança em recursos materiais e humanos. No entanto, os desafios à construção da estrutura não se esgotaram, uma vez que seria nesta mesma localização que os técnicos responsáveis pela avaliação da obra iriam encontrar um Tejo profundo e com águas de velocidade elevada e variável.
Os esforços para a construção de uma ponte voltam a surgir em 1953, quando o Ministério das Obras Públicas, à data sob a tutela de José Frederico Ulrich, decide criar uma comissão de trabalho para a construção da travessia. Daí até à abertura de um concurso público para apresentação de propostas passaram seis anos. Um ano depois, em Março de 1960, o Governo apresenta as quatro propostas concorrentes.
A 21 de Fevereiro de 1961 o contrato para a construção é assinado pela empresa norte-americana United States Steel Export Company, líder na produção do aço à escala mundial, que incorporava a American Birdge Division da US Steel Coorporation, que forneceu todo o aço utilizado nas duas torres principais da Ponte 25 de Abril.
Com um investimento de 2,2 milhões de contos, o equivalente a cerca de 11 milhões de euros, os trabalhos começariam a Novembro de 1962, num desafio de engenharia sem precedentes no país. As suas quase 73 mil toneladas de aço e os 263 mil metros quadrados de betão foram trabalhados por 14 empresas, 11 das quais portuguesas. Durante o período de construção chegaram a trabalhar na ponte três mil empregados num só dia. Entre pisos irregulares e inclinados e águas profundas, os técnicos foram desafiados a garantir a instalação das torres principais em condições adversas: ainda antes de estar completa, a ponte sobreviveu a dois terramotos.
O baptismo e inauguração acontecem a 6 de Agosto de 1966, mas a escolha do nome, ao contrário do que se possa pensar, não foi do presidente do Conselho de Ministros. António Salazar terá dito, num texto citado por Luís F. Rodrigues, no livro A Ponte Inevitável, que não concordava com o nome Ponte Salazar e sugeria que se lhe chamasse “Ponte de Lisboa”. “Durante séculos será seguramente única”, acreditava. O nome acabou mesmo por ter a bênção do chefe de Estado, Américo Tomás, e a cerimónia mobilizou cerca de 12 mil pessoas.
Nesse dia, o tráfego foi aberto gratuitamente por volta das três da tarde a inúmeros automobilistas que desde manhã aguardavam pelo momento em que inaugurariam os mais de dois quilómetros de ponte. Houve mesmo quem, com o entusiasmo, fizesse várias viagens nesse dia, tal era excitação com a ponte prometida. As filas que se formaram, e que chegaram aos 25 quilómetros, provaram isso mesmo e obrigaram ao corte do trânsito.
A Ponte Salazar manteria o seu nome até 1974. Depois da Revolução de Abril, bastaram dois dias para que o recém-criado Comité de Acção Popular escrevesse 25 de Abril sobre a placa onde se lia o nome de Salazar. A tinta negra improvisada viria a tornar-se definitiva a 5 de Outubro do mesmo ano, e o novo nome foi oficializado durante as comemorações da República.
Apesar de o projecto inicial apresentar uma proposta que combinava a circulação rodoviária com a ferroviária, durante a execução da obra as autoridades portuguesas decidiram avançar apenas com a rodoviária. No entanto, o aumento do tráfego, causado pela modernização da economia portuguesa e pela “generalização do transporte privado individual”, como nota João Ferrão, geógrafo e investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, obrigou à concretização da segunda fase do projecto e ao posterior alargamento do número de faixas rodoviárias.
A ponte uniu o país
Se é inegável que a ponte introduziu uma rotina frequente de ligação entre as duas margens que estimulou e alterou as perspectivas de desenvolvimento da região de Lisboa, não é menos verdade que veio preencher a ligação que faltava entre o Norte e o Sul do país.
As mudanças aconteceram “quer do ponto de vista da actividade das empresas, quer do ponto de vista das pessoas”, analisa o geógrafo. As relações desenvolveram-se, estreitaram-se e reforçaram-se.
“A população do Sul do país, da zona do Alentejo e do Algarve, quando se aproximava de Lisboa ia essencialmente morar na margem Sul”, uma vez que o rio Tejo rasgava a comunicação rodoviária, contextualiza João Ferrão. “A Ponte 25 de Abril veio dar resposta, de uma forma mais directa, à necessidade de tornar mais fluídos os fluxos que já existam sobre as duas margens e, de uma forma mais indirecta e numa noutra escala, veio também dar resposta à necessidade de articular melhor a parte Sul e do Norte do país.”
“No início dos anos 60, a área de Lisboa estava a entrar numa época de rapidíssima expansão, ao contrário do que acontece hoje”, analisa o antigo secretário de Estado do Ordenamento do Território e das Cidades no Governo de José Sócrates. “As pessoas que vinham do Norte paravam na Margem Norte e as pessoas que vinham do Sul paravam na Margem Sul. Havia essa divisão.”
A Ponte Marechal Carmona, popularmente conhecida como a Ponte de Vila Franca de Xira, se resolvia em parte a ligação Norte-Sul do país, “sobretudo entre Lezíria e Alentejo”, era vista como demasiado distante para quem morava em Lisboa. “Ninguém ia da Margem Sul à Margem Norte fazendo esse desvio. Em vez disso, as pessoas apanham o barco, o que demorava muito mais tempo e não tinha grande utilidade para quem queria viajar de Lisboa em direcção ao Algarve, por exemplo.”
Com a chegada de população das antigas colónias portuguesas e com o movimento de êxodo rural, Portugal via a sua capital a crescer, e uma metrópole a ser “alimentada de baixo e de cima, por pessoas completamente diferentes” o que diferenciava quem vivia e trabalhava em cada uma das margens.
Por outro lado, aumentava também o fluxo entre as duas margens. “Mesmo para as pessoas que viviam e trabalhavam na Margem Sul existia muita necessidade de virem à Margem Norte tratar de assuntos administrativos, por exemplo”, nota o investigador.
Era por isso necessário encontrar uma solução que resolvesse a ligação entre as duas margens que mais tarde se viria a chamar a Área Metropolitana de Lisboa.
A nova ligação, a nona sobre o rio Tejo, trouxe o que mais nenhuma tinha conseguido até à data: introduzir uma escala inter-metropolitana na zona de Lisboa, criando condições para uma relação mais complementar entre Lisboa e Almada.
“Ao mesmo tempo começa a haver a modernização da economia da sociedade portuguesa”, conta João Ferrão. “Os portugueses começam a ter novos hábitos, como ir para a praia, ter residências secundárias”, exemplifica. “Começa a descobrir-se o Algarve, quer a nível nacional, quer a nível internacional e esta travessia ganha uma nova dimensão.”
A necessidade de uma travessia na área de Lisboa já “não é apenas por pessoas que trabalhavam num lado e tinham de ir fazer alguma coisa ao outro lado do Tejo” — a ponte passa a servir segmentos muito diferentes.
Todo este processo de modernização é também acompanhado de uma generalização do transporte privado individual, “e isso vai dar grande mobilidade às pessoas para utilizar a ponte a horas muito diferentes, com objectivos muito diferentes e com percursos muito diferentes”, sublinha o geógrafo.
Preconceitos
“Em geral quando falamos da ponte associam-se muito os seus efeitos negativos, como a suburbanização do sul, o caos urbanístico que dela resultou, a pressão construtiva que a Margem Sul sofreu”, exemplifica. “Tudo isso é verdade, mas existem também aspectos positivos.” João Durão sugere que se veja “do outro lado da ponte”. Se não se tivesse avançado com a obra, o caos urbanístico em Lisboa seria ainda mais agravado, por exemplo.
Ainda assim, não se evitaram uma série de preconceitos que perduram até hoje, “em parte com razão”. Para os lisboetas, “a Margem Sul era igual a industrialização, a movimentos sindicalistas, a partidos da oposição, a operários”.
“Até ao 25 de Abril, do ponto de vista oficial do Estado Novo, a Margem Sul era a margem rara, a margem vermelha.” Para todos os efeitos, o território a sul do Tejo era visto como uma zona industrial e zona poluída que ninguém queria visitar.
A ponte foi um importante passo, mas faltou um “chapéu ordenador”. Para João Ferrão, “houve a ausência de um planeamento a nível da Grande Lisboa” e a falta de ordenamento que multiplicou as consequências negativas acentuadas pela Ponte 25 de Abril é consequência de um “combate e uma relação de poder assimétrica entre a área de transportes e ordenamento do território”. “
É a diferença entre ordenar e estruturar, explica o antigo secretário de Estado. “A estrutura acontece em função dos transportes e objectivos sectoriais. Já quando falamos em ordenar o território, falamos numa organização em função de objectivos transversais, não só dos transportes”.
Há um jogo entre a visão urbanista e de ordenamento de território e a visão meramente relacionada com os transportes. Enquanto temos um sector que procura ordenar o território, ao lado há um que efectivamente estrutura o território, que é o sector dos transportes. “É uma visão que não tem sido articulada, nem nunca foi. Nem antes, nem depois da ponte 25 de Abril, e nem mesmo na Ponte Vasco da Gama”, denuncia. Aliás, para o investigador, com a construção da Ponte Vasco da Gama, a Ponte 25 de Abril “passou a ter uma irmã mais nova” que reproduziu “os mesmos aspectos positivos e negativos”.
O responsável deveria ter sido o poder central, analisa, que se “demitiu do seu dever” e deixou para as autarquias a vontade e a capacidade de coordenarem o ordenamento do território, numa missão falhada. “Atribui-se muito a culpa às autarquias e à especulação imobiliária. Pode ser verdade, mas só foi possível porque não havia um plano enquadrador que cabia ao Estado fazer.”
Relação assimétrica
“Ainda hoje existe uma relação completamente assimétrica entre as duas margens, que é uma herança do passado”, considera. “As pessoas da Margem Sul estão muito mais informadas do que se passa na Margem Norte do que o contrário. As pessoas na Margem Norte têm ideia de que não se passa nada na outra margem, o que não é verdade. Persiste a ideia de que há margem de primeira e uma margem de segunda.”
Na altura, um dos slogans da ponte falava do nascimento de “uma cidade com duas margens”, assente na ideia de que a cidade só era cidade se considerarmos por igual a existência de duas margens, colocando o estuário do Tejo no centro. Mas na prática, continua a existir uma ‘margem boa e a margem má’. A margem privilegiada e a margem esquecida. “Mesmo quando atravessam o rio Tejo os turistas vão para ver Lisboa da Margem Sul”, aponta.
Há um preconceito social, que está não só associado a uma crítica ao modelo de industrialização como de crítica ao Estado Novo, a que a ponte ainda é associada. “A Margem Sul representa tudo aquilo que a elite não queria ter ao pé de casa e que está do outro lado do rio”, sublinha. “Há muitos estudos sobre o impacto da ponte em relação à Margem Sul, mas faltam estudos equilibrados que estudem o impacto na Margem Norte e que analisem quer os efeitos positivos quer os negativos.” À falta disso, “vivemos segundo impressões”.
Mas o que fazer para esbater estas dicotomias? Construir uma nova ponte? Não passa por aí, defende o artigo governante. “A questão não é aumentar os fluxos entre as duas margens, mas sim uma questão de actividades, visibilidade, reconhecimento e atractividade”, acredita o geógrafo.
A “Ponte sobre o Tejo”, permitiu uma abertura de oportunidades nos dois sentidos, quer para a Margem Sul, quer para a Margem Norte, mas também ligou o país. João Ferrão nota que a “invasão turística” no centro de Lisboa está a empurrar as pessoas para as cidades da Margem Sul e por isso a resposta poderá estar no próprio factor tempo e contribuirá para “criar uma nova imagem das terras a sul do Tejo”.