José Manuel Neto em tons de solo
Um dos mais disputados e talentosos guitarristas portugueses lança agora o seu primeiro disco a solo. Tons de Lisboa confirma a voz própria que talhou em mil e um concertos.
São tantos os espectáculos em que nos habituámos a vê-lo tocar e a aplaudi-lo, que José Manuel Neto já se tornou, com a sua guitarra, uma figura mais do que familiar. Vimo-lo em múltiplos palcos com Carlos do Carmo, Camané, Ana Moura, Aldina Duarte, Mísia, Cristina Branco, Mariza e nos momentos instrumentais teve muitos merecidos aplausos. Agora, chegou-se ele mesmo à ribalta. Tons de Lisboa, o seu disco de estreia, editado com o selo do Museu do Fado (onde, diz ele, foi feito um "lançamento espectacular"), não é ainda um disco de autor no que à composição diz respeito (isso ficará para outros trabalhos), mas pode ser considerado de autor na forma de abordagem dos temas.
Nascido em Lisboa, em 29 de Outubro de 1972, filho da fadista Deolinda Maria, José Manuel Neto começou a tocar guitarra portuguesa aos 15 anos. O seu percurso nestas três décadas foi decisivo para este disco, onde se reúnem composições de guitarristas históricos, como Armandinho, Jaime Santos, José Nunes ou Mário José Lopes, e temas novos com assinaturas de Carlos Bica, Tiago Machado ou Manuela de Freitas.
"Em primeiro lugar teve a ver com as influências. O Armandinho era inevitável, porque é o pai da guitarra portuguesa. O que aconteceu foi: juntámo-nos no estúdio, tocámos e fomos escolhendo. Como conhecemos muitos instrumentais que habitualmente tocamos juntos, íamos decidindo em quais deles faríamos arranjos — ao fim e ao cabo, é o que fazemos com os fados. E depois de termos todos em cima da mesa, escolhemos: este ficava bem, aquele menos. Fui tudo muito intuitivo."
"Máquinas perfeitas"
Em seis dos temas gravados, ouvimos apenas o trio básico do fado. Em Armandinhos, Valsa Eduardina e Vira de Frielas tocam José Manuel Neto, na guitarra portuguesa, Carlos Manuel Proença, na viola, e Daniel Pinto, no baixo acústico. Já em Despertar e Variações em lá, o baixo ficou a cargo do professor e decano Joel Pina, com 96 anos completados em Fevereiro. "São máquinas perfeitas. Foi uma pessoa que se cuidou, a vida toda. Mas não deixa de ser extraordinário vê-lo activo e a tocar como toca. E fez sentido nessas duas guitarradas. Uma, Variações em lá, é do Armandinho [1891-1946], e o Joel Pina tocou com ele. E a outra, Despertar, ele também a tocou com o autor, o Jaime Santos [1909-1982]. Aquele som, aquela forma de tocar baixo já não há, é única." No sexto tema, Variações sobre o Fado Lopes (de Mário José Lopes, guitarrista e cocheiro do rei D. Carlos), o baixo acústico muda de mãos, para as de Frederico Gato.
Mas, a par destes temas, entregues à estrutura "tradicional", José Manuel Neto faz-se acompanhar de outros instrumentos noutros três. Tiago Machado, ao piano, Vicky Marques, nas percussões e Ricardo Neto, no contrabaixo, acompanham-no em Finta, Será e Chorinho do Norte, este também com Pedro Jóia na guitarra clássica.
Finta, que abre o disco, será, de todos eles, estruturalmente o mais híbrido e versátil: "O Valter Rolo enviou-me três temas, todos eles muito bonitos, mas esse ficou-me porque conseguia sobreviver sem os outros instrumentos. Toca-se bem em guitarra e viola, tranquilamente. Aqui tem piano e percussão, porque fazem sentido neste arranjo."
Quanto a Será, nasceu num palco. "O Carlos Bica tem gravado nos discos do Camané, com o José Mário Branco. E num concerto do Coliseu foi ele que veio tocar, comigo e com o Carlos Manuel Proença. Estávamos indecisos sobre que instrumental iríamos tocar e ele disse que tinha um tema dele mas não sabia se se enquadrava. Fizemos um arranjo em que começámos com o tema do Bica, ele solou, todos nós solámos, e depois fizemos a ligação para uma guitarrada tradicional. Isto foi em 2001 ou 2002 e ficou-me na cabeça. Agora pensei: porque não gravar aquele tema, sem mais nada?" E assim foi.
Para José Manuel Neto, isto prova que a guitarra pode libertar-se de espartilhos. "Uma guitarra portuguesa pode viver noutros mundos, não só no fado. Aliás o fado também pode, nalguns casos, viver sem a guitarra. Só com viola, ou com orquestra." O título do disco veio também daí. "Tons dá a ideia de tons sonoros e de tons de cor. E a ideia de levar a guitarra para outros lados, juntá-la com outros instrumentos, tudo isso acontece em Lisboa. Um dia eu estava no CCB, cá fora, a olhar um pôr-do-sol fantástico, a ver aqueles tons de fim de tarde e lembrei-me desse título: Tons de Lisboa."
Num disco quase todo instrumental (nove temas em onze), há dois fados cantados. O primeiro chama-se O Neto, foi escrito por Manuela de Freitas e tem vozes Carlos do Carmo, Aldina Duarte, Camané e Mariza. O mote é ele próprio, o guitarrista, não que ele o sugerisse, mas foi a autora que assim quis. "A ideia desse fado foi minha. E o Becas [nome por que é conhecido Alfredo Almeida, o produtor executivo do disco] sugeriu que fosse a Manuela de Freitas a escrevê-lo. A princípio não tinha a ver comigo mas com a junção de vozes. Há um pingue-pongue de gerações e de géneros (homem-mulher, homem-mulher). A escolha da música aconteceu no estúdio, e lembrei-me do Fado Mouraria porque quis lembrar o espírito das antigas desgarradas."
Outro Neto, com a avó
O segundo é um fado antigo, dos anos 1960 (A carta do adeus, de Mário M. Pereira), gravado pela sua mãe, Deolinda Maria (1939-2008). "Foi passado do vinil para digital, ficou com aquele fritado e tudo, para dar a entender que não havia aqui manipulações." Mas aos músicos originais, Francisco Carvalhinho (guitarra portuguesa), Pais da Silva (viola) e Liberto Conde (baixo acústico), juntou-se o contrabaixo de um outro Neto, Ricardo de seu nome, filho de José Manuel Neto e neto de Deolinda Maria. "Toca com a avó, minha mãe. Gravou numa pista à parte por cima. Ouviu, várias vezes, e depois tocou."
Mas Ricardo Neto, 22 anos, não tem qualquer relação com o fado. "Está a estudar no Conservatório de Amesterdão e já vai fazendo concertos com a orquestra do Concertgebouw. Tudo clássico. Embora lá no conservatório já se comece a misturar as aulas de jazz com as da clássica." Joel Pina ouviu a parte de Ricardo Neto e perguntou a José Manuel: "Ele esteve a ouvir os meus discos?" "O Joel Pina encontrou ali um pulsar muito parecido, mas a verdade é que o Ricardo nunca ouviu um disco mesmo de fado. O que ele conhece, e pouco, são as coisas mais mexidas da Mariza ou da Ana Moura."
Porquê A carta do adeus? "Havia coisas que se gravavam que não foram deixando rasto, gravadas para editoras que já não existem. Este fado é de um dos primeiros discos dela, o primeiro ou o segundo. E tem o Francisco Carvalhinho que, dos grandes guitarristas, grandes nomes (da geração do José Nunes, Jaime Santos, Raul Nery) foi o único que eu ainda vi tocar ao vivo. E foi uma das minhas fontes de inspiração."
No futuro, José Manuel Neto tenciona apostar em originais. "Não vou só gravar temas meus, vou também pedir a outros compositores. Mesmo os que habitualmente não compõem para guitarra portuguesa." Diz que não tem receio de compor, mas o que o preocupa é sobretudo o resultado. "Sou muito crítico em relação às minhas coisas. Neste instrumento temos de ter cuidado a fazer as coisas, ao compor, para não descaracterizar. Porque senão parece outro instrumento de cordas, soa como um instrumento qualquer."