Ho99o9: uma última revelação na despedida do Milhões de Festa
O festival encerrou este domingo com um concerto tumultuoso. Mais uma surpresa de um festival que aproxima músicos e público, que revela e inspira. Na edição 2016, destacaram-se Islam Chipsy & EEK, Sons of Kemet, The Heads e Goat.
Estão ali, entre o público, mas afastados do turbilhão frente ao palco. Estão a ver os Oozing Wound e aquele thrash apunkalhado do trio de Chicago, riffalhada em velocidade supersónica sem solos à vista, cabelos rodando como pás de moinho, gente aos saltos e gente acometida de acessos de air-guitar e air-drum, ou seja, tocando guitarras e baterias imaginárias. Eles: um com uma t-shirt rasgada dos Suicidal Tendencies, outro com o blusão sem mangas em cujas costas se lê Ho99o9, ou seja, Horror, ou seja, o duo, acompanhado de baterista, que protagonizará horas depois o momento mais extremo do Milhões de Festa. Hip hop e hardcore e performance agressiva e zangada, olhos nos olhos com o público – literalmente, que eles descerão do palco para lançarem o seu esgar e os seus gritos no rosto de quem vê.
No último dia de festival, domingo, e fazendo jus à sua identidade feita de diversidade musical sem fronteiras, andávamos num momento de coração cheio de sentimentos bonitos e vontade de os partilhar e, no momento a seguir, éramos sobressaltados pela visão de que nem tudo no mundo são sentimentos bonitos e sorrisos cúmplices. Os mascarados Evil Blizzard, os primeiros no Palco Milhões, ao início da noite, até podem ser mistura curiosa dos dois estados de espírito, mas depois deles e depois dos Part Chimp o Milhões entrou em modo montanha-russa. Que bem soube.
Ao longo de três dias, guardámos na memória o afrojazz dos Sons of Kemet, o voodoo rock globalizado dos Goat e o dancehall saturado de The Bug, acompanhado pelas rimas bem medidas de Miss Red – aconteceu na sexta. No sábado, houve o afrobeat via São Paulo dos Bixiga 70, felicíssimos por verem uma multidão a dançar à sua frente, houve a intensidade do psicadelismo minimal dos ingleses The Heads, daqueles históricos de culto que o Milhões de Festa tanto preza, e houve, principalmente, uns superlativos Islam Chipsy & EEK, vindos do Cairo para iluminar a madrugada com sintetizador e duas baterias que, pelos três em palco, pelos outros todos na plateia, poderiam ter tocado música até que o sol voltasse a brilhar.
Ao longo destes dias, vimos durante a tarde hip hop galego transformado em performance punk, cortesia dos Malandrómeda, levámos uma descarga eléctrica daquelas com os Quelle Dead Gazelle e com os Riding Pânico e sentimos boa brisa pop, muito primaveril, apesar de o calor ser de pico de Verão, com os Extraperlo onde encontramos os músicos que acompanham El Guincho em concerto. Aconteceu no Palco Taina, este ano trazido para o interior do recinto principal do festival, no Parque Fluvial de Barcelos – perdeu-se o jardim varanda com vista para Barcelinhos dos anos anteriores, ganhou-se uma maior concentração de público (manteve-se a necessária sombra).
Com cerca de três mil espectadores por dia, o Milhões é um festival de proximidade, de encontros e partilhas. É um festival que inspira pela abertura ao novo e à descoberta, pela forma como se esbatem distâncias entre o público e os músicos que com ele convivem na piscina, nos caminhos do recinto ou nas ruas da cidade. Quem vem a Barcelos ao Milhões quer voltar, e volta, no ano seguinte. E é provável que vários tenham entretanto formado bandas ou começado a agenciar concertos, que tenham editado fanzines ou gravado podcasts: que tenham utilizado o espírito do festival como motivador para criar algo.
Tudo aquilo já era sensação que tínhamos antes de domingo, o último dia do Milhões de Festa 2016. Tudo isso já se tornara claro no decorrer dos dias anteriores, entre os concertos e as batalhas com bolas insufláveis na piscina, entre as conversas à mesa farta, ou não estivéssemos no Minho, nos restaurantes da cidade. Domingo, porém, ainda guardava histórias de que se fará a história desta edição do festival.
À tarde dançaram-se os Love, Jon Spencer Blues Explosion ou Cypress Hill na piscina que encerrou festividades com um DJ set de Legendary Tigerman. À noite, como já escrevemos, vivemos uma montanha-russa. El Guincho, nascido nas Canárias, disse-se muito feliz por estar de regresso a casa e recordou que na sua anterior passagem pelo Milhões, em 2010, a Espanha era campeã europeia. “Agora são vocês os campeões. O ciclo completa-se.” Um “síííí” à Ronaldo colectivo como resposta e a festa pode continuar. Festa de Verão, em modo tropical digital. Tudo sol e boa vida nas canções de El Guincho. Tem um novo álbum, HiperAsia, tem muito autotune a modular a voz, mas é quando regressa a Bombay, a sua canção assinatura, que se solta a dança colectiva, e é quando toca a sua “canção hino” do Milhões, mesmo no final, que se forma a linha de conga das linhas de conga do festival – várias delas cruzando a plateia em modo deliciosamente caótico.
Saímos da festa tropical de El Guincho directamente para o headbanging dos Oozing Wound e ainda o pescoço abanava ligeiramente quando aterrámos novamente no Palco Milhões. Deparámo-nos com todo um outro cenário. Balões voando pelo ar, um concurso de dança que, ao fim de dez segundos, se transforma em pista de dança caótica, uma baterista enérgica e um mestre-de-cerimónias que canta também ele com voz de autotune e que lidera este arraial moderno com um electropop de marca pessoalíssima inventado em Portland (há house e electro ali dentro, há sintetizadores new wave e ambiente de rave toda ela hedonismo).
Em palco, Dan Deacon. “Learning to relax”, disse ele. É o título de uma das suas canções, mas aquilo que suscita é um exercício de relaxamento bastante diferente do que estamos habituados. Aquilo ali ao fundo não é um gajo de pé engessado e muletas a ser levado em ombros pela multidão? Era mesmo. E o que seguiu a toda esta descontração? Convoque-se o Coronel Kurtz de Apocalypse Now. Ouçamo-lo: “The horror.” “Ho99o9”, corrigiremos nós a partir das 2h30 da madrugada.
São um duo formado por TheOGM e Eaddy, nascido em Newark e que entretanto se mudou para Los Angeles – mas a sua proveniência e o lar que habitam é outro: o lado negro da psique humana, os escombros da civilização maquilhados pela arquitectura impecável das cidades. São banda de hip hop e são banda de punk hardcore. São isso e não são nada disso exactamente – habitam o mesmo universo tumultuoso, neurótico e autodestrutivo de uns Death Grips. Têm com eles um baterista que não dá descanso a pratos e peles, têm uma pequena caixa de sons ligados a uma torre de amplificadores. Tocam com túnicas de feiticeiro alienígena, com unhas postiças gigantes, com grotescos dentes falsos – e lanterna a brilhar na cabeça para toque sinistro. Hão-de acabar em tronco nu e de calções por demasiado calor e demasiada agitação. “We don’t take no shit”, dirão algures. E é verdade. Descerão até ao público e cantarão entre ele, enquanto o caos se desenrola em seu redor. O passo compassado de um hip hop convulsivo, batida seca envolta em ruído, dá lugar a impossível aceleração hardcore e assim sucessivamente. Não há descanso, não há qualquer refúgio à vista. Não é bonito o que se vê daqui, mas é uma experiência avassaladora. Um reflexo perturbador, amplificado, do negrume que nos envolve na vida de todos os dias.
Depois deles, chegaria Nidia Minaj e os Dj Yeah para que o festival se despedisse com boa ginga. A grande surpresa do último dia, porém, já tinha sido revelada. Escreve-se ho99o9. Lê-se horror. Mais uma revelação em Barcelos. Obrigado, Milhões.