“Não tenho pessoas que me aceitem”

Portugal tem 325 inimputáveis em razão de anomalia psíquica e 158 estão numa clínica psiquiátrica dentro de uma prisão. Há homens que entraram há mais de 25 anos nesse que é o mais inacessível lugar do sistema prisional. Um deles nem sequer tem registo civil

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Paulo Pimenta

O doente mais antigo entrou há 32 anos na clínica psiquiátrica do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo. Há quem lhe chame “O Homem Que Não Existe”. Tem registo criminal, número de recluso, mas não tem registo civil, número de contribuinte, de Segurança Social ou de Saúde. A família nunca o registou. E o sistema prisional não arranjou forma de o fazer, apesar das várias diligências.

É um lugar único em Portugal. Reúne 158 doentes mentais oriundos de todo o país. Uns deambulam num pátio ou nos corredores separados por portões gradeados. Outros passam grande parte do tempo na enfermaria, que mais parece uma sala de convívio de idosos à espera do fim. Só 11 ficam fora da clínica, numa casa de transição, à entrada da quinta-prisão.

Quando o director do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, Hernâni Vieira, e a directora-adjunta, Otília Barbosa, cruzam as grades da clínica psiquiátrica, um magote precipita-se. Muitos estendem-lhes a mão. “Bom dia. Bom dia. Bom dia”, vão repetindo, saltando de mão em mão. Um puxa um braço do director e fita-o, com um ar um tanto angustiado.

— Que queres? — pergunta Vieira.

— Quero ir embora!

— Um dia destes vais. Já falta pouco.

No regime comum, os reclusos cumprimentam com um aceno ou uma frase. “Na clínica psiquiátrica, as formas de comunicação são mais básicas”, explica Otília Barbosa. O toque é importante, sobretudo para quem não tem família, como “O Homem Que Não Existe”. Esse até lhes beija as mãos.

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É um homem magro, de ombros caídos. As calças, largas na cintura, caem-lhe um pouco. Não traz cinto. Vende tudo o que pode. Agora mesmo, procura quem queira uma carteira de cigarros vazia, ou melhor, alguém que tenha tabaco de enrolar e careça de filtros. Quer trocá-la por um cigarro.

Ao que se pode ler no seu processo, no dia 12 de Abril de 1984 entrou num autocarro da Sociedade de Transportes Colectivos do Porto com uma faca e encostou-a ao pescoço do condutor, exigindo-lhe o apuro. O homem reagiu. Ficou ferido. “O Homem Que Não Existe” sentou-se no banco dos réus e o Tribunal de Instrução Criminal do Porto ordenou que fosse internado em “estabelecimento de cura, tratamento ou segurança”. Nos primeiros tempos, a família ainda aparecia. “Abandonaram-me por medo. Fazia asneiras. Bati na minha mãe. Bati no meu irmão. Estava avariado da cabeça. Não compreenderam.”

Ali dentro, abundam homens com debilidade mental, como aquele, mas mais de metade sofre de psicose, sobretudo esquizofrénica. “Não basta medicá-los”, esclarece o psiquiatra Jacinto Azevedo. “É preciso ter uma estrutura que os conheça, que estabeleça regras, que faça chegar um médico em caso de descompensação.” A psiquiatra responsável, Amélia Bentes, pode ser chamada a qualquer hora do dia ou da noite. “Eles, às vezes, só precisam de um bocadinho de atenção”, refere ela. “Vêem-me passar. Todos querem consulta. Todos querem falar. Tenho de cumprimentar todos na entrada e todos na saída.” Mas acontece descompensarem mesmo. No limite, têm de ir para uma cela de isolamento. Não nus, como há anos. Com um pijama próprio, à prova de suicídio.

 “O Homem Que Não Existe” passa parte das manhãs no pátio com outros desocupados. O crânio calvo, descoberto, a barba grisalha, por fazer, as calças largas, a camisa apertada, tudo saído do armário de roupas doadas, que está organizado por tamanhos, mas hoje acusa a escassez agudizada pela avaria da máquina de lavar.

“Estive a limpar isto tudo”, anuncia. “Limpei o chão todo. Apanhei as garrafas, os copos, os papéis. Estão as ervas todas limpinhas.” Fez “tudo em dez minutos” e está a aproveitar o recreio. “Deito-me ao sol. Quando estou farto de apanhar sol, vou para a sombra.”

A limpeza do pátio interior rende-lhe 15 euros mensais. É uma estratégia da técnica de reeducação para o ocupar um pouco e lhe dar hipótese de ganhar algum dinheiro para cigarros e cafés, já que não tem pensão social, nem família que lhe faça depósitos. Não chega para os vícios. E ele entretém-se a arranjar estratagemas. Volta e meia põe-se na fila do bar para dar o lugar a quem lhe pagar um café. Crava aqui. Crava ali. Diz uma graçola. Canta: “Cigana, cigana, cigana, por que não te casas comigo?” Um ou outro cede, por lhe achar piada, por ter pena, para mais tarde cobrar.

Há outros doentes que não conseguem segurar tabaco nas mãos. Não resistem às investidas dos mais fortes. Dão o que têm ou são roubados. Para prevenir desespero, o chefe dos guardas mantém-lhes os maços do lado de fora das grades e entrega-lhes alguns cigarros por dia. E o recluso que trabalha no bar raciona os cafés que lhes serve.

Não são todos inimputáveis em razão de anomalia psíquica. Alguns presume-se que o sejam, mas aguardam ainda julgamento. Outros têm uma perturbação de personalidade e foram condenados a cumprir pena num sítio com estas características. E outros estavam a cumprir pena no regime comum e precisaram de tratamento - têm Alzheimer, Parkinson, Síndrome de Korsakoff ou outra doença mental.

 “O Homem Que Não Existe” dorme numa cela individual - um espaço rectangular, com uma cama de solteiro, uma mesa-de-cabeceira, um armário estreito, um espelho de parede, um lavatório, uma sanita. Numa cela igual, quase em frente, fica aquele a quem chamam “O Professor”. Caminha curvado, o passo lento, a cabeça a cair para a frente, as mãos a tremer.

De acordo com o processo, “O Professor” cresceu numa família pobre. Na infância, não foi além do 4º ano de escolaridade. Cumprido o serviço militar, pôs-se a estudar. Concluiu o ensino secundário com excelentes notas. Frequentou a Universidade dos Açores. Quando a psicose se manifestou, combinava o trabalho num café com o estudo de História na Universidade do Minho. Num delírio persecutório, matou o pai. O Tribunal de Instrução Criminal de Bragança declarou-o inimputável a 23 de Junho de 1987.

— Com é a vida aqui?

— É vida de cadeia.

— O que é vida de cadeia?

— Esta parte, aqui, é a clínica. A maioria dos internados sofre de alguma doença que faz com que seja muito barulhenta.

Passa grande parte da manhã e da tarde na enfermaria. Quando não está ali, perdido nos seus pensamentos ou “a ver um bocadito de televisão”, está no refeitório, a comer, ou na cela, a dormir ou, uma vez mais, “a pensar na vida”. Uma vez por semana, participa na terapia de grupo.

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É o doente mais antigo. Entrou há 32 anos na clínica psiquiátrica do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo. Há quem lhe chame “O Homem Que Não Existe"

— E sai?

— Não. Nunca.

— Porque não?

— Ah. Não tenho, assim, pessoas que me aceitem.

Já não se lembra da última vez que algum familiar o visitou. O irmão mora em São Paulo, no Brasil. E a irmã mora em Saragoça, em Espanha. No princípio, ela ainda vinha, nas férias. Depois, a doença dele transformou-a numa inimiga, como fizera com o pai. E ela deixou de aparecer.

— Estou à espera de ir para casa.

— A que casa se refere?

— Aos Salesianos, uma ordem religiosa que há na minha terra.

— Já sabe quando vai?

— Não, não sei.

O desinteresse familiar é comum, diz Hernâni Vieira. Não raras vezes, a vítima é o pai, a mãe ou os irmãos - 86% dos internados em Santa Cruz do Bispo cometeram crimes contra pessoas e 40,4% dessas pessoas são familiares. Amiúde, a distância não ajuda. A família está em Trás-os-Montes, na Beira Interior, no Alentejo, no Algarve ou nos Açores e nem sempre tem dinheiro para se deslocar. Boa parte mantém apoio familiar e competências para trabalhar, mas 49,5% não tem qualquer suporte.

“Muitas vezes, a vinda de uma pessoa destas para o sistema prisional é um alívio para a família”, nota Ramos da Fonseca, juiz do Tribunal de Execução de Penas do Porto. “Fazia barulho, pegava com os familiares, pegava com os vizinhos. Um dia, fez asneira da grossa e foi posto no sistema prisional. No início, a família costuma reagir bem. ‘É um tratamento.’ O problema é que, às vezes, a perigosidade mantém-se. E o tempo vai passando. Morrem os pais. Os irmãos afastam-se. Os tios já não existem. Os primos não aparecem. E temos outro problema.”

Uma forma de perpétua 

Por regra, o limite do internamento é a pena máxima prevista no Código Penal para o crime cometido. Por exemplo, quem pratica um crime de violência doméstica incorre numa pena de dois a cinco anos. Se for imputável sujeita-se a uma medida de segurança até cinco anos, que pode cessar a qualquer momento. Nos crimes mais graves, com pena igual ou superior a oito anos, o internamento pode não ter fim. Quem comete um homicídio, como “O Professor”, sujeita-se a uma medida de segurança de três a 16 anos. Findo esse tempo, a cada dois anos, o caso é reavaliado.

“É preciso ver se o indivíduo apresenta ou não perigosidade social”, elucida o psiquiatra e investigador Fernando Almeida, que durante mais de 30 anos fez perícias desse tipo. “Fala-se em risco, mas o que se avalia é a perigosidade. E se tem um enquadramento familiar ou institucional que lhe permita manter-se compensado.”

“Muitas pessoas dizem: matou, esfolou; é tolinho, não lhe acontece nada. É a única coisa que pode transformar-se em perpétua”, aponta Otília Barbosa. “Não é por vontade, é por falta de alternativa”, salienta o juiz. “Se a pessoa deixa de ser perigosa, acabou, sai em liberdade total. Se é perigosa, mas aceita tratamento, está compensada, tem retaguarda familiar, pode ser posta em liberdade para prova. Difícil é quando a pessoa é perigosa, o tratamento está a ser eficaz, mas falta apoio familiar. Aí penso: Se houvesse uma instituição que o apoiasse, ainda seria possível.”

Parece-lhe evidente que “alguns homens não precisariam de estar em ambiente prisional”. De acordo com a lei, as medidas de internamento até devem ser, de preferência, cumpridas em ambiente hospitalar. O que se passa? “Os inimputáveis são os patinhos feios do sistema. Ninguém quer saber deles. Não há resposta no sistema nacional de saúde. O que há são instituições particulares de solidariedade social ou santas casas da misericórdia, que só aceitam tratar do problema à porta da liberdade”, lamenta. “Empurram umas para as outras. Às vezes, na véspera da libertação ainda andamos à procura de alojamento”, corrobora Otília Barbosa.

Não é um segredo. “É uma preocupação que me acompanha desde o meu primeiro dia”, diz Celso Manata,  novo director-geral de Reinserção e Serviços Prisionais. “É um problema que tem de ser resolvido e que será resolvido a breve trecho”, garante, numa alusão a um velho diferendo: o Estado (Ministério da Saúde) quer cobrar ao Estado (Ministério da Justiça) pelo internamento destes doentes e o Estado (Ministério da Justiça) acha que não tem de pagar ao Estado (Ministério da Saúde). Já pensou na possibilidade de celebrar um protocolo com a Santa Casa da Misericórdia do Porto, com quem o Estado partilha a gestão do Estabelecimento Prisional Especial Feminino de Santa Cruz do Bispo, e testar um novo modelo numa ala do Hospital Conde Ferreira. Mas “isso, para já, é só uma ideia”.

Neste momento, estão 176 inimputáveis em ambiente prisional (os que não estão na clínica do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, estão no Hospital Prisional de Caxias). E cerca de 150 em ambiente hospitalar - em Coimbra, Lisboa, Sintra, Barcelos, Funchal e Ponta Delgada.

Esteve quase a ir para a Casa de Saúde do Telhal, em Sintra, o homem que chama “cara linda” a quase todas as mulheres que entram na clínica psiquiátrica. A família nunca o esquece, mantém assíduo contacto telefónico, mas só uma vez por ano se desloca de Beja a Santa Cruz do Bispo para lhe dar um abraço. Se “Cara Linda” fosse para aquela instituição vocacionada para doentes psiquiátricos de evolução prolongada, ficaria mais perto da mãe e da irmã. Tudo se arrastou. Quando abriu uma vaga e a Administração Regional de Saúde emitiu a autorização para pagar 1800 euros por mês, o limite máximo da pena já tinha terminado, o que quer dizer que o juiz já não o podia pôr à prova. Temeu que parasse a medicação. A perita de medicina legal que o reavaliara alertara para o risco. “Está compensado do quadro psicótico com a medicação em curso. Necessita de manter tratamento em ambiente protegido e com estrutura de supervisão clínica e psicossocial, condições obrigatórias para o controlo da sua perigosidade”, escreveu ela.

Nos dias bons, poucos sorriem tanto como “Cara Linda”. É então fácil puxar conversa. “Estou fresquinho. As calças estavam estragadas. Fiz uns calções”, começa por contar.  E a certa altura, lá vem o assunto.

— Toma medicamentos?

— Muitos, muitos.

— Quantos?

— Uma injecção por mês e sete comprimidos por dia. Não preciso de tantos. Já não precisava de nenhuns, mas eles querem dar, eu tenho de tomar. Sou obrigado. Estou aqui, tenho de respeitar as ideias deles.

— E se saísse daqui?

— Se saísse daqui e pudesse evitar tomar, evitava tomar. Isso é como uma droga. Eu não fumo droga.

Pelo que consta no seu processo, está encarcerado desde 3 de Agosto de 1990. Tinha sido proibido de entrar no Centro de Trabalho do Partido Comunista Português de Montes Velhos. Era um castigo por distúrbios que ali provocara. Entrou no bar e pediu uma cerveja. O empregado recusou-se a servi-lo. Houve zaragata. “Cara Linda” foi posto na rua. Afastou-se, na sua bicicleta, mas voltou atrás, com umas pedras. “Não atires pedras à sede, pois isso custou a arranjar e não pode ser destruído. Prefiro que as atires a mim”, disse-lhe o autarca da freguesia vizinha, ao vê-lo. E ele ficou quieto.  O homem recomendou-lhe que fosse para casa, ofereceu-se para o conduzir. Chegados ao destino, tirou a bicicleta do carro e encostou-a ao muro. “Cara Linda” pediu-lhe que a colocasse dentro do quintal. O homem obedeceu-lhe. E “Cara Linda” espetou-lhe uma navalha no tórax. Diagnosticaram-lhe uma psicose esquizo-afectiva e uma debilidade intelectual moderada.

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Doentes no corredor da clínica psiquiátrica Paulo Pimenta

— Tem falado com a família?

— Telefonei ontem à minha irmã. Falei com ela e com o meu sobrinho. Diz que o meu sobrinho apareceu na televisão. Eu não vi. O meu sobrinho é bom rapaz. Estou muito contente com o meu sobrinho.

— Estão longe?

— Não me querem em casa. Andaram a tratar das coisas para eu ir para uma instituição. Eu sou alentejano. Só tenho visitas de anos a anos.

— Quem costuma vir?

— Antes, vinha a minha mãe, mas a minha mãe partiu uma perna, foi para um lar, já não pode vir. A minha irmã e o meu cunhado é que vêm. Às vezes, vem o meu sobrinho. Dizem que é melhor estar numa instituição. Dizem que é melhor do que estar aqui. Eu não sei. Nunca lá estive!

— E como é estar aqui?

— Só tenho aqui amigos. Doentes, enfermeiros, guardas. Já houve guardas maus, mas estes guardas que estão cá são todos bons. O guarda Loureiro é o maior amigo que eu aqui tenho. É uma jóia de homem.

— Que faz o Loureiro para que goste tanto dele?

— Estou cego de uma vista e da outra vejo mal. Às vezes digo assim: “Senhor Loureiro, quero ir para a cela”. E ele diz: “Vai lá.” Eu vou, descanso, fico melhor. O Loureiro deixa-me ir. E dá-me o resultado do Oriental, dá-me o resultado do Castrense, dá-me o resultado do Sporting. Eu gosto do Sporting.

— Havia guardas maus?

— Havia aí um que era mau. Ele batia-me. Ele já abalou. Ainda bem que ele já abalou. Foi uma sorte.

O Comité Europeu para a Prevenção da Tortura já chamou a atenção para relatos deste género. O director não diz que nunca aconteceu. Diz que “o problema foi resolvido”. Nem todos servem para este ofício. E sobram doentes. Faltam guardas. Faltam psiquiatras. Está um psiquiatra de baixa. Só há uma psiquiatra a tempo inteiro e outro a meio tempo. “Servem para manter os serviços mínimos, isto é, para não deixar que estas pessoas descompensem”, revela Joaquim Azevedo. “Em termos de terapias, actividades, há uma falta de recursos muito grande”, reconhece.

Também faltam auxiliares de acção médica. “Neste momento, temos cinco a tempo inteiro. Precisaríamos de dez para se poder fazer fim-de-semana”, admite o director. “A equipa de enfermagem está melhor. Funciona 24 horas. Qualquer problema, o médico recebe um telefonema e dá instruções. Se for necessário, vem cá. Precisávamos de pelo menos mais um técnico de reeducação.”

Para alguns, é um lugar terrível. Para outros, é o que conhecem como casa. “Nada mais natural”, observa Fernando Almeida. “Não têm projecto de vida. Não têm recursos para ter projecto de vida. Ali, estão em segurança, as suas necessidades básicas são satisfeitas, têm espaço para deambular. Preferem esse espaço a outro que seja mais confinado, que desconheçam.”

“O Homem que não existe” nunca se sentiu em casa noutro lado. Nasceu numa família nómada. O pai perdeu-se no vinho. A mãe morreu-lhe aos sete meses. Acolheu-o a avó, que lhe morreu aos cinco anos. Foi adoptado por uma família da comunidade. Amiúde, fugia, metia-se em alhadas. Aos 10 anos, fugiu de vez. Ia para onde pendia. Dormia onde calhava. Usava a mesma roupa até arranjar outra. Envolvia-se em pequenos furtos. Arriscava roubar. “Apanhei muita cadeia em Espanha”, diz ele. “Voltei para Portugal. Roubei um autocarro. Vim preso.”

Chegou a ser transferido para o Hospital Psiquiátrico de Lorvão, em Penacova. Um dia, conta assim: “Estive lá. Injecções, injecções, injecções. Passava todo o dia a dormir. Fugi para aqui. Aqui tenho paz e sossego.” Outro dia, conta assim: “Estive lá. Comecei a chorar e tal. E eles entraram. ‘Então você está a chorar?’ ‘Estou a chorar.’ ‘Tenho pena’. ‘Tenho ali amizades e tal.’ Fui pela estrada fora. Apanharam-me. ‘Quer ir para a cadeia?’ ‘Quero. Quero ir para a cadeia.’ Trouxeram-me! Na cadeia tenho paz e sossego.”

Ali dentro, sabe o que esperar: às 8h00, porta aberta; das 8h00 às 8h35, pequeno-almoço; das 9h20 às 11h00, recreio interior; das 11h30 às 12h00, almoço; da 13h30 às 14h20, sesta; da 14h20 às 16h, recreio exterior; das 17h00 às 17h40, jantar; às 19h, porta fechada. No tempo que sobra, há quem aproveite para compras nos bares, escrever, preencher papéis, telefonar ao advogado ou a familiares. Ele está com amigos, crava, afina esquemas para arranjar cigarros e cafés. “Todos são meus amigos.”

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Os doentes são revistados e passam pelo detector de metais depois do passeio ao exterior
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“O Profeta”, um dos doentes da Clínica Prisional de Santa Cruz do Bispo
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“O Estudante” na casa de transição

 A vida, lá fora, é uma provação. “Não tenho para comer. Tenho de andar a roubar” Em Santa Cruz do Bispo não lhe falta comida. “A comida às vezes é boa. Às vezes, é pior. Come-se. Gosto mais de peixe. Gosto de bacalhau, azeitinho, couve galega. Os outros só querem carne.” Três vezes por ano, sai com Cláudia Assis Teixiera, voluntária da associação Foste Visitar-me, e aproveita para cravar um rádio, umas pilhas ou uns auscultadores.

Voluntária para passear

Uma quinta-feira por mês, Cláudia Assis Teixeira está à porta da prisão. Nunca sabe quem levará a passear. “Não escolho. Eles são todos desprotegidos. Têm todas a mesma necessidade. Por que é que haveria de escolher?” Cruza a porta pesada, metálica, às 11h15. Identifica-se. Passa pelo detector de metais. Caminha ao longo da estrada de asfalto que atravessa parte da quinta. Entra na clínica. Um guarda chama pelos números dos autorizados a sair. E o mistério acaba.

Julho traz-lhe um homem que ela nunca viu. Ele cumprimenta-a. Encolhe-se. É a primeira vez que sai. Não tem família que o visite ou acolha. Este mês traz-lhe também uma cara que ela bem conhece: “O Homem Que Não Existe.” O terceiro homem do mês não está na clínica, está na casa de transição, tem alguma autonomia, capacidade de trabalho, competências para a vida diária. “Vou comprar um relógio”, anuncia. “Faz-me falta para controlar a hora que tenho de me pôr a pé. Nós, aqui, de manhã, não toca nada.”

Cada um tem uma conta na qual vai sendo depositado o dinheiro ganho. Metade é para uso corrente e metade reservada para ocasiões como esta. Todos querem levantar dinheiro na portaria. O primeiro homem faz limpezas na enfermaria. Levanta 50 euros “para o caso de aparecer alguma coisa para comprar”. O terceiro é jardineiro. Levanta 100 euros para comprar o relógio, um pão de forma, um pouco de presunto, e carregar o cartão, que tanto serve para telefonar como para fazer compras no bar. Só “O Homem Que Não Existe” não tem dinheiro para levantar. Entristece. Quer comprar um novo rádio a pilhas. Tem a mania de os abrir. Volta e meia, precisa de substituto.

— O director se calhar apanhou medo. Se calhar pensou que eu ia apanhar o dinheiro e ia fugir.

— Fugir com 15 euros? - pergunta a voluntária.

— Sim.

— Ele sabe que tu comigo não foges.

Acompanha-a sempre um homem. “Não me importava de ir sozinha”, afiança. “A minha família é que não deixa. Há homens que precisam de ajuda para ir à casa de banho. Se não, eu vinha, nas calmas, só com eles. Não me sinto em risco. Nunca tive medo. Eles sabem que eu lhes faço bem. Não iam fazer-me mal.”

É engenheira. Eram os filhos pequenos, combinou com o marido deixar o emprego e cuidá-los. Começou a fazer voluntariado quando a criança mais nova celebrou três anos. Há uma dúzia de anos, um amigo desafiou-a a visitar reclusos: “Há um guarda que trabalhou com o teu pai e gostaria de te conhecer.” O pai foi director do Estabelecimento Prisional do Linhó, em Cascais, mais de 30 anos.

Ainda hesitou. Sábado era dia de estar com o marido e os filhos. Acabou por ir a uma reunião. Dias depois, ligou-lhe um voluntário a perguntar se podia levar uns inimputáveis a passear. Esse homem chamava-se Carlos Coelho. Cumpriram a missão anos a fio. Quando ele morreu, ela continuou. “Uma pessoa fica sensível a quem sofre. E uma coisa puxa a outra”, clarifica. Todos os dias tem uma actividade com doentes ou presos.

“Os do regime comum têm saída precária três vezes até sete dias por ano, fazem-se ao caminho”, explica o juiz Ramos da Fonseca. “Estes não. Se a família não vem e eles não têm como ir, não saem. Deixo sair três vezes até dez horas com um voluntário. É uma lufada de ar fresco. Mas há uns que não querem. Têm medo.”

Dona Cláudia, como lhe chamam, costuma levá-los a Vila do Conde ou à Póvoa de Varzim. Almoçam num restaurante modesto. Caminham junto à marginal, os músculos a esticar, o aroma do mar nas narinas, o vento a bater no corpo. E vão às compras.  Nos primeiros minutos, parecem crianças atarantadas. “O mar não pode ficar seco”, diz “O Homem que não existe”. “Onde foste buscar isso?”, ri-se ela.

Trá-los por volta das 16h30. Acontece quererem voltar antes. Basta estar muito frio ou haver algo estranho. “Uma vez, eram as luzes de um shopping”, recorda ela. “O Homem que não existe” traz o rádio novo, que tanto queria. Gentileza da voluntária.

Gosta de ouvir música. Gosta de ouvir música e de cantar. Todos os dias canta. Canta, por exemplo, isto: “Eu estou aqui na solidão. Penso sair da solidão uma noite ou um dia. Deixo a solidão e vou a voar.” Sairá algum dia? “Não sei. Sou doente mental. Estou internado. Agora, sou capaz de ir para outro sítio. Se vejo que é melhor lá, fico lá. Se vejo que lá é pior, venho para aqui.”

Com um pé lá fora

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Pela marginal de Vila do Conde com a voluntária da Foste Visitar-me

Não tem de ser para sempre. Na casa de transição, inaugurada em Maio do ano passado, estão homens capazes de viver com uma ligeira supervisão. Mantêm o espaço limpo. Cumprem a prescrição médica e farmacológica. Alguns têm expectativa de reinserção social e laboral.

Aquele a quem chamam “O Estudante” já vai a casa. Não três vezes sete dias por ano, mas seis vezes, umas vezes três dias e outras quatro. Está a fazer um curso de educação e formação de adultos, que lhe dará equivalência ao 12º ano. “Não gostava de ir à escola. Agora, estou aqui, tenho de fazer alguma coisa”, diz ele. O pai abana a cabeça, em sinal de aprovação: “É um aproveitamento do tempo e um passatempo. Hoje, para qualquer trabalho pedem o 12º ano. Tenhamos fé.” 

Ninguém, ali, tem uma relação tão próxima com os pais. Todos os dias, pouco depois de acordar, “O Estudante” telefona-lhes. “É a primeira coisa que a gente tem logo de manhã”, conta a mãe. Eles visitam-no todas as semanas. Sentam-se os três na sala de visitas, em volta de uma mesa, entrelaçam as mãos. “Esperamos que esteja perto de sair”, suspira o pai, 68 anos, outrora chefe de armazém numa fábrica de tecidos. “A mãe nunca sentiu tanto amor pelo filho.” A mulher, uma costureira dois anos mais nova, reconhece-o: “Nunca. Ele era tão rebelde. Eu acho que ele não estava bem com ele próprio. O cérebro dele não funcionava bem. Andava às avessas.”

Tanto pediram aos médicos que o internassem. Deixou de tomar os medicamentos. “Chamávamos a atenção, mas ele dizia que estava bem, que nós é que estávamos mal”, recorda o pai. “A doença é assim, não é? Pronto. Os médicos não nos ouviram. Fomos lá três ou quatro vezes. Ele andava perdido. Já não dormia. Comprou uma arma adaptada. E pronto. Aconteceu aquilo.” O quê? “Ele estava no terreno de uma vizinha, de chapéu, todo vestido de preto, de arma na mão. Os vizinhos fecharam-se dentro de casa. Ele ainda deu um ou dois tiros para o ar. A GNR assustou-se.”

“Eu primeiro fiquei revoltado de vir para aqui”, reconhece o rapaz. “Que vou fazer? Tenho família. Tenho de aguentar. A esperança é a última a morrer. E agora vejo que o que fiz estava errado. A medicação não me deixava trabalhar. Troquei a medicação pelo trabalho. Um dia que vá lá para fora não faço isso. Estar aqui serve para ver qual a importância da medicação na minha vida.”

Um acompanhamento assim é ouro. Quando estava no Hospital Magalhães Lemos, Fernando Almeida liderou um projecto destinado a perceber o que acontece após a libertação. Chegaram a 72 doentes. “Alguns tinham faltado a consultas, estavam descompensados, padeciam de quadros psicóticos com actividade delirante, com agressividade relativamente a familiares e vizinhos, isto é, a pessoas próximas”, relata. Foram encaminhados para tratamento. “Quando estão compensados, a agressividade baixa imenso, muitos tornam-se indivíduos com índice de perigosidade igual ou inferior ao da população em geral. Isto é importante dizer”, remata.

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