O cenário de pesadelo começa na Turquia
As possíveis consequências do que se está a passar vão muito para lá de novo aumento do número de refugiados.
O cenário de pesadelo para os próximos anos apareceu-me primeiro definido ao tentar descrever o preço da inação europeia na questão dos refugiados. Nessas ocasiões começo por explicar como até recentemente as necessidades de reinstalação de refugiados eram de 200 mil pessoas por ano, das quais cerca de metade era recebida nos EUA, Canadá e outros países. Entre 2009 e 2012 criámos na UE a base legal e financeira suficiente para um programa de reinstalação. Muitos governos europeus não quiseram usar esse programa porque politicamente lhes era inconveniente. Resultado: em vez de reinstalarem seguramente dezenas de milhares de refugiados a partir dos campos, a ausência de resposta levou muitas centenas de milhar a arriscar a vida.
Nesse tempo, tentei contextualizar, a Síria recebia refugiados, como hoje recebe a Turquia. Agora imaginem uma situação em que a Turquia...
Foi aí que a minha respiração parou. O que eu me preparava para dizer era alarmista e, ao mesmo tempo, estava ali diante dos olhos. Poderia a Turquia reunir o conjunto de características que a levasse, dentro de alguns anos, a uma guerra civil? A resposta instintiva seria “não”. A Turquia é uma potência regional, da NATO, com um regime cada vez mais centralizado no seu presidente, Recep Tayip Erdogan. A resposta mais cerebral é menos segura. A verdade é que a Turquia já vive uma guerra civil de baixa intensidade, há décadas, contra os curdos no seu sudeste. O exército e o sistema judiciário, impregnados em corrupção e autoritarismo, opõem-se intermitentemente ao igualmente corrupto e autoritário poder executivo. E há uma juventude que sufoca sob uma pseudo-democracia cada vez mais muscular e liberticida.
E na sexta-feira, de repente, começámos a receber alertas de que há um golpe em curso na Turquia. Passado um par de horas, o golpe parecia triunfante. Outro par de horas, derrotado. E enquanto discutíamos se o golpe era real ou apenas encenado, Erdogan já aproveitava aquilo a que chamou um “presente de Deus”. Em poucas horas, mais de dois mil juízes foram demitidos. O Exército vai sofrer uma limpeza semelhante, e os partidos da oposição (que condenaram o golpe) estão fora de jogo num parlamento que foi bombardeado. A pena de morte, segundo as últimas notícias, será restabelecida.
Tanto um colapso da Turquia como um reforço ditatorial de Erdogan são assustadores. A UE deve começar por traçar uma linha vermelha: com a reintrodução da pena de morte todas as negociações de adesão da Turquia à UE serão canceladas. Quanto aos governos europeus, preparem-se para um programa de reinstalação a sério. Não só o indecente acordo que fizeram com Erdogan não pode durar como os primeiros requerentes de asilo turcos já chegaram ao território europeu.
As possíveis consequências do que se está a passar na Turquia vão muito para lá de novo aumento do número de refugiados, desta vez sem qualquer país de trânsito pelo caminho. Elas alertam-nos para quão perigosa seria uma UE em desagregação e incapaz de defender os seus valores democráticos fundamentais. Escrevo “seria”, e não “será”, porque não torço por esse cenário – não porque o ache impossível.