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A guerra da Síria nos corpos massacrados de Olga Roriz

Depois de uma viagem até Atenas em que visitou campos de refugiados, Olga Roriz resolveu concentrar a sua nova peça num apartamento em Alepo. Antes que Matem os Elefantes, em palco no Teatro Camões, é uma peça violenta e desesperada como há muito não víamos.

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PAULO PIMENTA
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À medida que a crise dos refugiados foi tomando conta do espaço mediático, dando conta de relatos cada vez mais dramáticos, de gente desesperadamente pondo em curso fugas para lugares incertos, apostando tudo na mais elementar noção de sobrevivência, Olga Roriz percebeu que não podia virar a cara e fingir que aquela realidade que se lhe apresentava escarrapachada, de forma extrema, colidia com estrondo com a ideia “simples e inicialmente muito insípida” que tinha de trabalhar sobre a ideia de uma pequena comunidade à procura de um lugar. Ignorar esta provocação trágica da realidade seria ater-se a uma ideia pequenina, acantonar-se numa metáfora pífia e quase ofensiva de uma realidade impossível de tapar ou mascarar.

Em vez de se encolher, Olga Roriz decidiu aproximar-se, meter-se a caminho, e foi com o apoio da embaixada até Atenas, à Praça Victoria (local onde pernoitam muitos refugiados), até ao Porto de Pireu, até ao campo de refugiados de Eleonas. “Uma coisa é sabermos das piores notícias; outra coisa é estarmos lá, sentirmos as pessoas, ouvirmos e falarmos com elas”, diz a coreógrafa. “Aquilo marcou-me muito. Já ia muito sensível e um bocado amachucada de Portugal, porque tinha visto vários documentários, mas aquela experiência apanhou-se ainda mais.” No regresso, continuou a sua pesquisa, mergulhando novamente no material documentado em vários filmes, até que em Janeiro começou a trabalhar com os seus bailarinos, passando-lhes a informação que recolhera e, pelo meio, descobrindo pela primeira vez “algumas inclinações políticas” de intérpretes com quem trabalha, em certos casos, há vários anos.

Só que quanto mais continuava a passar horas diante de imagens sobre a situação da Síria que a deixavam sempre em lágrimas, Olga Roriz começou a perceber que concentrar-se nos refugiados era como alguém apontar para um sítio (a Síria) e Olga focar o seu olhar no dedo. Em vez do facto mais imediato, quis partir à procura da origem do problema. Começava a sentir-se mais próxima dos dramas familiares de famílias repentinamente sem tecto e drasticamente separadas. Ao fim de algumas sessões de trabalho, sentou os bailarinos e consultou-os sobre os dois rumos possíveis, informando-os da sua clara preferência pela segunda hipótese: ou seguiam na exploração coreográfica da temática dos refugiados ou transferiam a sua pesquisa coreográfica para a guerra na Síria. Ninguém se opôs, até porque o cenário de guerra trazia consigo uma imediata imagem de inegável intensidade: um apartamento desfeito em Alepo.

Antes que matem os Elefantes_promo_2016 from Companhia Olga Roriz on Vimeo.

Em vez da relativa abstracção em que trabalhavam até então, passavam a trabalhar a partir de uma situação concreta. Em vez do previsto título Welcome, a peça passava a chamar-se Antes que Matem os Elefantes. Com o apartamento-abrigo, destruído, colocado no centro do palco, não demoraram a surgir um sofá estafado ou um frigorífico decrépito, elementos avulsos de vidas deixadas em suspenso. Com o cenário definido, Olga Roriz deixou que os sete bailarinos criassem as suas narrativas individuais, inventassem os seus percursos e as suas eventuais ligações afectivas. E foi neste palco que começou a desenhar-se uma tensão persistente e uma violência que não víamos numa peça da coreógrafa desde Propriedade Privada, uma das suas obras mais emblemáticas, reposta em 2015 a pretexto dos 20 anos da Companhia Olga Roriz.

“Foi importantíssimo”, confessa Olga Roriz relativamente ao papel que teve a revisitação de Propriedade Privada na criação de Antes que Matem os Elefantes, sexta e sábado no Teatro Camões, em Lisboa. “Houve uma cumplicidade muito grande deste grupo ao fazer a Propriedade Privada, em que se precisa de bater sem bater, de maltratar sem maltratar – é uma peça muito violenta nesse sentido. Este grupo juntou-se muito nessa altura.” E o nível de violência comum, diz, prende-se à sensação constante de que naquele palco tudo pode acontecer. Tanto assim que, numa peça que rouba o fôlego pela extrema e constante fisicalidade, vemos corpos dos bailarinos a atirar-se para um chão coberto de detritos, num desespero sem-fim. Mais impressionante, até para própria Olgar Roriz, foi o “dia mágico” em que Bruno Alves, pegando num balde cheio de pedras, as despejou sobre si, como se um tecto lhe desabasse sobre a cabeça.

Lavar o cabelo

Essas pedras que Bruno Alves despeja sobre si, num momento de tal forma aflitivo que faz também pensar numa humanidade que se condena e tortura a si mesma – se o título da peça faz pensar em extinção, esta cena não lhe fica atrás –, são depois recolhidas por Bruno Alexandre, que as usa como elementos de reconstrução, materiais para organizar caminhos e tentar reerguer a cidade. É, num mar de desolação, o escasso que é oferecido de esperança, por muito que possa parecer também alimentar um mesmo ciclo em que a cada momento de reconstrução se segue um novo bafo de destruição.

Talvez a necessidade extrema de ordem, no entanto, a encontremos no gesto recorrente em que as mulheres se recolhem, num canto, a lavar os seus longos cabelos. No meio do caos, do pó que se levanta em sequências quase asfixiantes, os cabelos são lavados como a normalidade que é possível reclamar, a dignidade a que ainda é possível aceder, o pouco controlo que resta sobre o corpo. Foi uma imagem que Olga Roriz viu repetir-se nos documentários e que, sem sequer questionar, se infiltrou nas improvisações de Antes que Matem os Elefantes e foi ficando, com a mesma naturalidade inquestionável com que se afirmava na realidade – “mesmo nos campos de refugiados”, acrescenta, “em que não há água para quase nada, elas arranjam maneira de ter um bocadinho para lavar o cabelo”. Por momentos, é como se tudo estivesse na mesma, a vida corresse normal, o quotidiano permanecesse intocado. Só que, em redor, nem uma parede de pé.

Dividindo internamente a peça em cenas principais e secundárias, acções e paisagens, Olga Roriz resolveu fazer da música um eco distante, com a excepção de dois momentos em que os bailarinos se juntam uma reivindicação ou numa reza. Em ambos os casos, deixam de se focar apenas naquilo que acontece dentro de palco, dirigem olhares, exigências e súplicas para fora, a música aumenta para fornecer ao público algum alívio, mas, sem que seja claro como, porquê e até mesmo quando, a música volta a retirar-se para o fundo, tudo volta à mesma desesperança. Talvez porque do exterior, na verdade, nunca se ouve uma resposta.

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