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A falsa seita que abusava de crianças numa aldeia que nunca desconfiou

Ministério Público acusa oito adultos de centenas de crimes de abuso sexual e pornografia infantil numa aldeia em Palmela. Os dois principais arguidos envolveram os próprios filhos, de cinco e oito anos.

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A população de Brejos do Assa foi surpreendida no dia em que a polícia fechou ruas para fazer buscas às casas onde viviam os abusadores Rui Gaudêncio

Do pouco que alguns residentes de Brejos do Assa dizem recordar-se, sobressai nas conversas a imagem de “uma jovem a caminhar pelo passeio com os dois filhos”. A mulher, hoje com 29 anos, andava com o mais pequeno de carrinho, e com o mais crescido pela mão, num movimento quotidiano e insuspeito nesta aldeia do concelho de Palmela, para onde se mudou com o marido no início de 2014.

Muitas vezes, cumprimentava num aceno, sem aprofundar conversas, vizinhos ou conhecidos. “Passava muitas vezes para ir à mercearia”, contam várias pessoas dizendo que pouco ou nada sabiam desta família. São apenas conhecedores das aparências.

A mulher caminhava, empurrando o carrinho, e por vezes parava no café antes ou depois de deixar o filho mais velho na escola, um rapazinho, na altura com sete e oito anos, de quem o pai abusava sexualmente, fingindo “brincadeiras de doutores”, de acordo com o despacho de acusação do Ministério Público (MP), com data de 23 de Junho de 2016. Os abusos aconteciam com o conhecimento da mãe, e muitas vezes na presença do filho mais novo de ambos, na altura com dois e três anos. O MP deduziu acusação contra o casal e mais seis adultos.

Tudo parece perto nesta aldeia de Setúbal, mas as vedações que separam as casas separam também mundos. E não há voz que admita ter alguma vez suspeitado do mundo em que os abusadores envolviam estas crianças. Todas tinham menos de 14 anos. Umas eram da aldeia. Outras vieram de fora. 

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Como a mãe, também constituída arguida, com termo de identidade e residência, o pai “era simpático, bem-falante e muito educado”, diz-se no café Ruby, onde poucas pessoas falam, apenas enquanto conhecedores de aparências. “Via-se que eram famílias carenciadas. Cheguei a pedir roupa para o menino mais velho. E o meu marido foi um dia buscá-lo à escola a Setúbal”, quando ele ainda aí frequentava a escola mas já vivia na aldeia, diz uma senhora no café. “Vieram de Setúbal para aqui para se esconderem. E esconderam-se num sítio camuflado", diz atrás do balcão uma das funcionárias.

Abusados pelos próprios pais

Neste café, durante algum tempo, antes do Verão de 2015, investigadores da polícia vinham tomar o pequeno-almoço, depois de uma denúncia de que não se conhece a proveniência. “Andavam por aí” em carros descaracterizados, e a maior parte das pessoas não sabia que eram polícias, até um dia em que, com “grande aparato policial”, os oito adultos acusados de abuso sexual de crianças foram levados: a mãe que caminhava com os dois filhos; o marido e pai destas crianças, principal arguido, que dizia ser treinador de futebol de formação, além de psicólogo, pronto a ajudar crianças; um amigo, divorciado, pai de um rapaz, na altura com cinco anos, também abusado por ambos; e mais três homens e duas mulheres, atraídos em contactos na Internet, através do Facebook ou da partilha dos mesmos sites de conteúdo homossexual, e que ali abusavam de crianças a troco de contrapartidas.

Todos viveram de forma permanente ou provisória em instalações de um quintal onde começou por se instalar o casal, em Janeiro de 2014, aí permanecendo até 25 de Junho de 2015, quando foram surpreendidos pela polícia. Os telhados dificilmente se vislumbram da estrada, estando as casas no meio de um arvoredo no terreno de uma luxuosa vivenda.

Os oito acusados faziam ali a vida, dividindo-se entre uma casa e um pequeno anexo ao fundo do terreno, propriedade de um casal da terra. A filha destes, namorada do primo do principal arguido, convenceu os pais a ajudar este casal de desempregados que diziam ter sido despejados, com os dois filhos, da casa onde moravam em Setúbal.

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Nesses dois espaços de quatro paredes, durante mais de um ano, o líder recebia crianças a pretexto de se ocupar delas, organizando Actividades de Tempos Livres no quintal, onde algumas mães deixavam os seus filhos por vezes persuadidos a lá pernoitar. Às crianças contava-lhes que estavam numa seita, um mundo imaginário que servia ao mesmo tempo para aliciar e assustar. O neto de uma senhora que vive numa casa, ali perto, chegou a ter explicações com a filha do proprietário, que não é arguida mas que o líder do grupo incentivava a trazer crianças à propriedade.

“Eu cheguei a pensar que ele podia lá fazer actividades de Verão”, diz esta avó, enquanto o neto de oito anos joga à bola na rua em frente à casa, sem companhia. “Seria uma forma de o entreter” nos meses de Verão, enquanto a mãe trabalha. Foi por isso um choque e um alívio para esta família ver desmascarada a rede, a falsa seita, a que o líder, que se apresentava como “Mestre”, deu o nome de “Verdade Celestial”.

“Actos purificadores”

Os miúdos que lá iam eram atraídos pelas explicações, ou pelas actividades. O primeiro contacto fazia-se muitas vezes quando o “Mestre” se oferecia para ajudar as crianças, enquanto psicólogo, depois de as conhecer, algumas no campo de futebol da aldeia. A sua mulher fazia publicidade nos cafés às consultas do marido.

As duas primeiras eram gratuitas, lembra-se a mãe de um menino que chegou a ter consultas com ele, mas sempre na presença dela. Com falsas credenciais de psicólogo, chegou a apresentar relatórios para a escola da condição do menino que tem dislexia, resultando em documentos insuspeitos, diz a mãe, pois neles usava a mesma linguagem técnica que mãe e avó reconheciam de relatórios anteriores feitos pelos verdadeiros psicólogos da escola.

Anos depois, quando os recebia na casa de Brejos do Assa, dizia a crianças e a adultos que as práticas sexuais, com ou sem ameaças, eram “actos purificadores”. Convencia-os ou forçava-os, como aconteceu com pelo menos um rapaz ainda na casa de Setúbal, que conheceu o principal arguido no Clube de Futebol “Os Esferinhas”, onde este se apresentava como treinador.

O contacto era fácil e a criança começou a frequentar a casa do principal arguido, onde conversava com ele e jogava PlayStation. Um dia, durante a conversa, o arguido apresentou-se como “um mestre espiritual” que o protegeria de “espíritos maus e demónios” se a criança lhe obedecesse. Com medo, a criança obedeceu, descreve o despacho de acusação, consultado pelo PÚBLICO. E mesmo quando tentava afastar-se ou pedia para nada fazerem, o arguido agarrava-a, forçando-a, dizendo que tinha poderes para amaldiçoá-la. Mais tarde, os métodos eram os mesmos, mas com outras crianças.

“Os arguidos revelam um total desrespeito pelas crianças vítimas […] mas, mais do que isso, são manifestos os laivos de sadismo com que falam dos menores […], evidenciando uma total falta de empatia com o sofrimento causado nas vítimas, seja físico, seja psicológico”, salienta o despacho de acusação, que se baseia em provas testemunhais, como depoimentos para memória futura das crianças, em provas periciais de natureza psicológica e sexual, em várias horas de conversações electrónicas entre os arguidos.

As buscas e detenções foram há mais de um ano — a 25 de Junho de 2015. Foram encontrados computadores com dezenas de ficheiros de imagens ou vídeos, com “imagens pornográficas que expunham menores, com idade inferior a 18 anos, alguns ainda crianças de colo”, lê-se no despacho de acusação.

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O documento salienta a gravidade do caso: os dois principais arguidos homens “não se coibiram de assim agir com os próprios filhos”, assumindo com eles comportamentos que "não raras vezes deixam mazelas físicas e psicológicas gravíssimas para as crianças”.

“Nunca ninguém pensou”

O principal arguido, de 34 anos, aguarda julgamento no Estabelecimento Prisional de Setúbal, acusado de dezenas de crimes de abuso sexual de crianças, crimes de violação agravada, actos sexuais com adolescentes, crimes de pornografia de menores agravados, seis crimes de lenocínio agravado e um crime de usurpação de funções, entre 2013 e Junho de 2015, quando foi preso preventivamente. Mas foi a partir de 2011 que o "Mestre" criou uma rede de perfis falsos “com o fim de fomentar contactos e conhecer pessoas com o propósito de combinar encontros entre crianças e terceiros que quisessem ter práticas sexuais com elas, a troco de dinheiro”. 

A medida de coacção mais gravosa foi também aplicada a outros três acusados de dezenas de crimes de abuso sexual de crianças ou de pornografia de menores. Os restantes, incluindo a mulher do líder da falsa seita, estão com medida de termo de identidade e residência. No total, são centenas de crimes, que começaram em Setúbal, passando no início de 2014 para esta terra de casas modestas e cuidadas, e de grandes vivendas, com largos portões e jardins com ou sem piscina.

No terreno ao lado do quintal da falsa seita, mas a grande distância, vive uma família da terra. Uma senhora vem ao portão. E conta que sempre viveu aqui com os pais, e aqui continua com o marido e o filho de quatro anos, estando à espera do nascimento do segundo filho. Começa por evitar o assunto, e depois é ela quem confessa precisar de falar.

Quer esquecer, mas todos os dias se lembra do que aconteceu. O que ficou para trás desespera-a, como a inquieta o que pode estar para vir. Tem os seus filhos. E pensar no que sofreram outras crianças, que ouvia a brincar no quintal, arrepia-a. “Nunca ninguém pensou.” Cada um vive a sua própria vida. E estas pessoas não eram conhecidas de ninguém da terra. “Caíram aqui de pára-quedas.” Como poderia alguém pensar que isto podia acontecer? “Assusta-me pensar na facilidade com que tudo isto aconteceu sem ninguém se aperceber."

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