Sanções e carta a Juncker ameaçam ensombrar debate do real estado da nação
À esquerda procura-se realçar as reversões feitas pelo Governo socialista com apoio de BE, PCP e PEV e avisa-se que é preciso mais; à direita faz-se um retrato negro dos resultados da política económica do Executivo de António Costa.
Com as atenções da última semana concentradas na ameaça latente das sanções de Bruxelas, nos pedidos de divulgação da carta de António Costa a Jean-Claude Juncker e na situação na Caixa Geral de Depósitos – já com a comissão de inquérito em marcha –, o debate sobre o estado da nação, marcado para esta tarde no Parlamento, irá andar entre duas visões opostas sobre a realidade do país. No confronto que analisa o último ano de governação, PSD e CDS estarão de dedo em riste e munidos de papéis com números negativos para lançar para a mesa; os partidos da “geringonça” irão servir como linha de defesa do Governo.
A direita promete usar indicadores estatísticos para traçar um retrato negro da situação económica e acusar o Governo de desbaratar o esforço dos portugueses durante quatro anos; a esquerda prefere apostar no elogio da reversão de medidas e de políticas de rendimentos e direitos avisando, no entanto, que há ainda um caminho a percorrer no próximo orçamento. Será certo que dos dois lados se usará a estratégia do passa-culpas – o Governo tem-no feito em relação à ameaça das sanções de Bruxelas, o ministro das Finanças fê-lo na terça-feira sobre a CGD, a direita costuma fazê-lo quando lembra a situação em que encontrou Portugal em 2011. No caso das sanções pelo défice excessivo (3,2%) de 2015, o Parlamento rejeitou-as de forma clara em dois projectos de resolução com a assinatura de todos os partidos, mas estes continuam a usá-las como arma de arremesso.
Além das estatísticas económicas e sociais, PSD e CDS vão atacar com outra arma: a carta que o primeiro-ministro enviou a Bruxelas e que o PÚBLICO divulga. A direita acreditava que a missiva poderia incluir algum compromisso ou informação económico-financeira que o Governo não queria, por enquanto, tornar público. À esquerda, os parceiros políticos de Costa dizem todos desconhecer o seu conteúdo. O centrista Nuno Magalhães classifica este comportamento como “teimosia” e desafia Costa, afirmando não querer acreditar que o governante “venha para o debate do estado da nação sem revelar o conteúdo da carta”.
O país vive uma situação política invulgar na sua história: a sessão legislativa da Assembleia da República iniciada na sequência das eleições de Outubro já assiste ao segundo Governo depois de a esquerda se juntar para derrubar o executivo liderado (durante apenas 11 dias em plenitude de funções) por Pedro Passos Coelho com uma das quatro moções de rejeição apresentadas em simultâneo no Parlamento; tem um Governo encabeçado pelo segundo partido mais votado nas eleições, com o apoio de três forças que não lhe garantem, no entanto, absoluta segurança parlamentar.
Neste cenário insólito, António Costa e o PS têm por vezes de navegar à vista para conseguir aprovar medidas – como aconteceu no orçamento rectificativo, por exemplo, por causa da decisão de capitalização e venda do Banif. A "geringonça", como ficou conhecido o acordo PS/BE/PCP/PEV depois de Paulo Portas usar o termo no debate em que a esquerda chumbou o Governo da coligação PSD/CDS (repescado de Vasco Pulido Valente que, no PÚBLICO o usara para definir o PS e as lutas de Costa e Seguro no Verão de 2014) foi-se aguentando ainda que sempre alvo de chacota da direita – ou, como Carlos César chamou a esta última, da “caranguejola”, adoptando o termo usado pelo mesmo Pulido Valente. António Costa ganhou confiança com o termo: “Sim, sim, é geringonça mas funciona”, chegou a atirar à oposição num debate quinzenal. O mesmo Portas classificou Costa, Catarina Martins, Jerónimo de Sousa e Heloísa Apolónia com “best friends forever [melhores amigos para sempre]”.
António Costa e o PS têm-se aguentado nas sondagens, como as da Eurosondagem para o Expresso e SIC. Em Novembro, PSD e CDS reuniam 40,8% das intenções de voto e o PS 32,5%; em Junho os primeiros somados conseguiam 38,7% e os socialistas 35,3%. Nos índices de popularidade, em Novembro Costa tinha um saldo positivo de 14,8 pontos (a diferença entra as respostas de avaliação positiva e negativa) e Passos ficava-se pelos 0,5 pontos; no mês passado o primeiro-ministro registava um saldo positivo de 25,7 pontos e Passos de 13,3.
Há um ano, quando o então primeiro-ministro subiu à tribuna para discursar, havia eleições marcadas para daí a três meses. Em jeito de balanço dos quatro anos de legislatura, Pedro Passos Coelho tentou mostrar que cumprira os objectivos a que se propusera ao conseguir a "saída limpa" do programa de ajustamento e traçou um cenário positivo da situação económica e financeira do país. Apesar de nos últimos meses se ter mantido em silêncio em alguns debates quinzenais deixando o palco para o seu líder parlamentar e motivando ironias da esquerda, hoje será Pedro Passos Coelho a questionar António Costa, confirmou o próprio ao PÚBLICO. “Seria muito bizarro que num debate de final de sessão eu não interviesse”, admitiu depois de alguma hesitação.
Melhor, mas é preciso mais
À esquerda, os partidos que assinaram as posições políticas conjuntas com o PS e o Governo vão concentrar atenções nas medidas que reverteram desde que conseguiram uma maioria no Parlamento. De acordo com os deputados ouvidos pelo PÚBLICO, a ideia geral entre BE, PCP e PEV é que o país “está melhor” mas “muito está ainda por fazer” – e é preciso fazê-lo com urgência.
Para avaliar o último ano, a ecologista Heloísa Apolónia considera ser necessário não só olhar para o que foi feito mas também “pensar no estado em que estaríamos e para onde caminhávamos se PSD e CDS se tivessem mantido no poder”. Na área do ambiente realça o travão na construção de barragens e junta-se ao bloquista Pedro Filipe Soares e ao comunista João Oliveira para destacar a reversão dos feriados, das 35 horas na função pública, das privatizações, ou a recuperação de rendimentos com reposição de vencimentos, redução da sobretaxa do IRS, aumento do salário mínimo e de apoios sociais.
O líder parlamentar do PCP avisa, porém, que o país continua a sofrer de problemas estruturais com a emigração, desemprego alto, pobreza, falta de investimento, dependência das regras europeias e défice. “Apesar de tudo, foi possível aprovar medidas positivas. São limitadas e insuficientes, sim, mas não podem ser desvalorizadas”, defende João Oliveira. A intervenção do Bloco vai hoje alicerçar-se neste “património de conquistas, mas consciente de que há desafios pela frente. Apesar das conquistas, há um país que exige mais de nós”, avisa o líder da bancada, Pedro Filipe Soares. PCP e BE prometem, por isso, falar de objectivos futuros, que querem ver no próximo orçamento, na área da educação, da saúde e dos rendimentos.
Carlos César é o motivador no PS. Olhando para os últimos meses, o líder parlamentar socialista admitiu que “não se ignoram as dificuldades, mas também não se viram as costas ao desafio” e não quis antecipar a estratégia para o debate. Sobre a questão da divulgação da carta durante o debate, o socialista, que recusou dizer se a conhece, optou pelo palavreado: espera que o primeiro-ministro “seja circunstanciado sobre as matérias que são mais momentosas”.
Degradação, diz a direita
“Há mais vida para lá das sanções” e por isso o CDS promete basear as suas intervenções de hoje nos indicadores económicos, financeiros e sociais para mostrar que este Governo “desperdiçou o esforço de quatro anos dos portugueses e o país tem agora menos exportações, investimento, emprego e confiança”. E mais problemas, resume o líder parlamentar do CDS. Questionado se não houve alguma medida positiva, Nuno Magalhães recusa ter uma “visão maniqueísta. Mas o balanço na área económica é tão mau que apaga tudo o resto.” Ainda assim, admite uma “pacificação na justiça”.
O vice-presidente da bancada social-democrata acompanha esta avaliação negativa. À Lusa, Marco António Costa realçou que as instituições internacionais têm revelado a “degradação da situação económica e social” em que o Governo de esquerda mergulhou o país depois de ter invertido o caminho de recuperação “construído” por PSD e CDS. Criticou o “discurso de falso optimismo” do executivo que criou “falsas expectativas” aos portugueses e está “permanentemente à procura de desculpas para justificar as falhas na concretização do crescimento económico”.
O debate desta tarde arranca às 15h e durará cerca de quatro horas, cabendo a abertura e o encerramento ao Governo. António Costa irá ausentar-se a partir das 17h45 para cumprir a agenda da reunião semanal com o Presidente da República, às 18h, em Belém.