Tudo por causa da América
Só havia uma coisa pior do que a invasão do Iraque: era os americanos fazerem a guerra sozinhos.
Tony Blair travou um infindo combate na defesa da guerra no Iraque, em confronto aberto com o seu partido e com a maioria da opinião pública. No dia 15 de Fevereiro de 2003 mais de um milhão de britânicos manifestaram-se em Londres contra a invasão. Idênticas demonstrações mobilizaram dezenas de milhões de pessoas em 600 grandes cidades de todo o mundo. No dia 26 de Fevereiro, enfrentou uma revolta sem precedentes de 122 deputados trabalhistas. Tinha contra si Paris e Berlim. Nada o fez recuar. Blair não era propriamente um belicista, antes se resignou à guerra, tornando-se no mais fiel paladino de George W. Bush. É isto que é fascinante e pesará na avaliação da História.
Tudo tem a ver com os Estados Unidos. No fim desse mesmo Fevereiro, Bush reafirmou que derrubaria o regime de Saddam Hussein “com ou sem ONU”. Acrescentou que o “novo regime iraquiano servirá de exemplo excepcional para os outros países da região”. As célebres armas de destruição maciça (ADM) de Saddam eram o pretexto. Mas as razões eram mais ambiciosas. Os neoconservadores tinham teorizado um círculo virtuoso em que a democratização do Iraque levaria à modernização do islão, culminando na paz israelo-palestiniana. Os EUA assumiriam a completa hegemonia da região.
Este projecto preocupava europeus e árabes pelo risco de consequências funestas ao refazer o mapa geopolítico do Médio Oriente. E aquilo que mais irritava os europeus era a nova arrogância imperial americana. “Com o fim da ameaça soviética tudo mudou e emergiu um sistema unipolar em que os Estados Unidos exercem uma posição de dominação sem concorrência”, escrevia o neoconservador Charles Krauthammer.
O aspecto político mais incómodo era o conceito de “guerra preventiva”. Os americanos arrogavam-se o direito de, em nome da moral ou da luta contra o terrorismo, fazerem guerras contra a lei internacional. Para isso, os neoconservadores imaginaram outro conceito: “A missão faz a coligação”, o que permitia dispensar os aliados tradicionais renitentes.
Paris e Londres
A Europa temia que a América estivesse a abrir uma Caixa de Pandora e entendia a guerra como um acto imperial, contrário aos seus interesses e à sua visão, que privilegiava o conflito israelo-palestiniano. Mas não era este o cerne do problema.
Na altura, estava perante um dilema porque havia uma coisa ainda pior do que a Caixa de Pandora: era que os Estados Unidos fizessem a guerra sozinhos, desvalorizando os aliados e as alianças permanentes, uma evidente ameaça à NATO e à União Europeia.
Para Paris e Berlim, a salvaguarda da legalidade internacional era também um meio de limitar as prerrogativas da hiperpotência americana. Mas, ao mesmo tempo, a Europa reconhecia a necessidade de que os EUA continuassem a exercer o papel de “polícia mundial”. Paris e Berlim correram o risco calculado de se oporem ao projecto americano exigindo mais tempo para inspecções e para a busca das ADM, que nunca apareceram, e a indispensável aprovação da intervenção militar pelas Nações Unidas. Paris e Berlim não tinham meios de impedir o conflito e acabaram por ficar à margem da gestão do pós-guerra. E como Londres e outras capitais faziam a aposta inversa abriu-se um ruptura dentro da UE.
Blair e Chirac serão os rostos desta divisão, que pouco tinha a ver com o Iraque. Tinha antes a ver com a relação com os Estados Unidos, encarados como a única superpotência do planeta. Explicou a Economist: “Nem Chirac nem Blair querem fazer a guerra no Iraque. Nem um nem outro acreditam que seja a boa guerra no bom momento. O problema é saber como conter Washington.” E aqui separam-se.
“Mas [Blair] nunca confessou o seu verdadeiro desejo, o de evitar a guerra, porque isso o privaria de qualquer influência sobre George W. Bush.”
Mentiras de Estado
“A táctica dos britânicos é sustentar ao máximo a política americana na esperança de influenciar Washington em privado. É uma tradição britânica que remonta ao fiasco do Suez em 1956”, prossegue a revista. Os EUA deixaram então cair britânicos e franceses. Londres decidiu passar a estar sempre ao lado de Washington. O general De Gaulle tirou a conclusão oposta.
Nem Chirac nem Blair pesaram na decisão americana. De resto, tanto Blair como os outros europeus tinham razões para temer um fiasco americano. Um enfraquecimento dos Estados Unidos lançaria o caos no Médio Oriente, uma das mais críticas regiões do planeta. Depois, foi o que se viu.
À custa de defender Bush e a invasão, Blair passou a dar uma imagem de “belicista sincero”. Foi tratado como “o caniche de Bush”. A sua imagem degradou-se com o suicídio de David Kelly, em Julho de 2003, cientista suspeito de ter passado à BBC documentação sobre a procura das ADM. Abriu um conflito com a estação e generalizou a convicção de uma grande “mentira de Estado” sobre o arsenal de Saddam.
A “mentira de Estado” nasceu com o próprio Estado. O problema de Blair é que o seu discurso moralista mais intolerável torna a mentira.