O poder quase absoluto de Diogo Gaspar em Belém

O director do Museu da Presidência, agora suspenso de funções por uma investigação judicial, construiu o seu percurso profissional com muitos meios ao seu dispor e pouco controlo sobre a sua acção. A história da sua ascensão ajuda a explicar a sua queda?

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Quando o museu abriu as portas ao público, a 5 de Outubro de 2004, Gaspar já era o único a ditar as regras Rui Gaudêncio

Foi quase por acaso que Diogo Gaspar chegou ao Palácio de Belém. Em Março de 2001 acabava de ser promovido, na Torre do Tombo, a coordenador da área de exposições e animação cultural. E foi isso que o levou à Presidência da República, com 30 anos acabados de fazer. Queria a colaboração de Belém para uma exposição sobre as relações Portugal-Rússia. E deu nas vistas.

José Manuel dos Santos era o assessor para os assuntos culturais do Presidente Jorge Sampaio e participou nas conversas com o jovem, formado em História da Arte, que todas as fontes contactadas pelo PÚBLICO descrevem como “muito persuasivo”, “dinâmico” e “cordial”. A Presidência já estava a avançar com um projecto de museu – baseado no espólio de António Ramalho Eanes, a que se juntaria o de Jorge Sampaio, que iniciava o seu último mandato. Tinha, até, um coordenador, Paulo Henriques, que acumulava a função com a direcção do Museu do Azulejo. Mas Henriques estava de saída. E José Manuel dos Santos pensou em Gaspar como alternativa: “Identificou-se o Diogo, por ter experiência em museologia e arquivo. Era alguém que por ser jovem tinha uma formação actualizada.”

Diogo Filipe Baptista Gaspar, um lisboeta, católico, acabou por ser nomeado coordenador do museu, ainda em instalação, em Setembro de 2001. Ficou lá até esta quinta-feira, 30, quando foi detido – e depois suspenso das suas funções por decisão de uma juíza de instrução criminal. Foram quase 15 anos de direcção na secretaria-geral da presidência, que atravessaram quatro mandatos de três Presidentes – Sampaio, Cavaco e Marcelo. E que agora terminam com um rol de suspeitas, anunciado pela Procuradoria-Geral da República: é suspeito dos crimes de tráfico de influência, falsificação de documento, peculato, peculato de uso, participação económica em negócio e abuso de poder.

Diogo Gaspar diz-se inocente e o Presidente da República lembrou que “deve ser presumido inocente”. A investigação dura há mais de um ano, desde Abril de 2015, tendo sido baptizada de Operação Cavaleiro, pela PJ, talvez pelas duas comendas que o director agora suspenso recebeu.

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Um director sem conselheiros

Diogo Gaspar começou por partilhar as tarefas de instalação do museu com uma equipa de historiadores. António Costa Pinto e Maria Inácia Rezola eram dois dos consultores, académicos, que integravam a equipa que fez – literalmente do nada – o levantamento exaustivo da vertente historiográfica: cronologias, biografias… Mas as discussões eram “constantes”. Alguns membros da equipa, de cerca de 30 pessoas, começaram a questionar o “rigor” de algumas opções e o “facilitismo” de Gaspar.

Nenhum destes alertas chegou a ser traduzido em queixas. Quando o museu abriu as portas ao público, a 5 de Outubro de 2004, Gaspar já era o único a ditar as regras. Venceu um concurso público a outros cinco candidatos. Foi considerado o “que melhor corresponde ao perfil pretendido”. Estava finalmente sozinho. Os consultores, como Maria Inácia Rezola ou António Costa Pinto, cessaram funções.

Esta é uma das singularidades do Museu da Presidência, que não integra a rede portuguesa de museus, nem se rege pelas mesmas regras. A ex-directora-geral dos Museus Raquel Henriques da Silva adianta ao PÚBLICO que a existência de um “conselho de curadores” ou, neste caso, de um “conselho científico”, ajudaria a manter a actividade do museu mais escrutinada, ainda que defenda caber ao director “uma margem de discricionariedade”.

A outra singularidade é o orçamento. Ao dispor do museu estiveram, anualmente, verbas que variaram entre 1,1 e 1,8 milhões de euros. O Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) recebe, por exemplo, do mesmo Orçamento do Estado, verbas muito semelhantes, segundo o seu director, “qualquer coisa como dois milhões”. A diferença de dimensão entre os dois museus é enorme. O MNAA tem verbas escassas para comprar obras de arte. O Museu da Presidência tem “vitrinas mais valiosas do que os papéis que guardam”, aponta um historiador de arte.

Diogo Gaspar tinha por “missão”, definida pela lei, “integrar todos os objectos de arte e espécies documentais e bibliográficas respeitantes à história da Presidência da República”, “gerir, conservar e organizar o espólio museológico da Presidência e manter actualizado o seu inventário” e “promover o estudo, valorização e divulgação” dos materiais de Belém. O mesmo decreto salientava uma regra que agora parece premonitória: “Nenhum objecto de arte ou espécie documental ou bibliográfica poderá sair do Museu sem autorização prévia do chefe da Casa Civil, ouvido o director.”

Ao longo destes 15 anos, Gaspar foi muito além desta “missão”. Essa é uma crítica apontada por diversas personalidades do meio ouvidas pelo PÚBLICO, e que solicitaram o anonimato. Em nenhuma das alíneas anteriores se pode, facilmente, enquadrar as exposições antológicas, ou individuais, dedicadas aos pintores Cruzeiro Seixas e Maria Keil. Ou a chancela do Museu da Presidência em exposições de tapeçaria. Ou de joalharia. Gaspar aparecia nas notícias a justificar-se com razões como “a salvaguarda e valorização do ponto de Portalegre”.  

A Cidadela

À revista VIP, Gaspar afirmou que “um dos objectivos estratégicos foi que este espaço, contido dentro do Palácio de Belém, seja apenas a ponta do icebergue. O nosso objectivo foi trabalhar as temáticas que se relacionam com o tema ‘Presidentes da República’ e tratá-los de uma forma alargada, diversificada e muito abrangente.” Ao Jornal de Letras acrescentava que nessa “abrangência” cabiam as funções de uma espécie de secretário de Estado da Cultura-sombra: “Temos procurado, no domínio das artes plásticas, divulgar a obra de personalidades que, marcando o século XX, foram esquecidas dos grandes museus.”

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O Palácio da Cidadela, após as obras de renovação Rita Chantre/Arquivo

Estas palavras não lhe deram muitos amigos no meio. Mas Raquel Henriques da Silva não deixou de lhe telefonar, para o felicitar pela exposição dedicada ao pintor surrealista Cruzeiro Seixas: “Extravasa a função do museu, mas eu acho bem. Do ponto de vista da História da Arte foi completamente oportuna. Era uma exposição com investigação, com um artista vivo. Mas não deixei de reflectir… Talvez o local mais apropriado fosse o Museu Nacional de Arte Contemporânea.”

A exposição foi montada no ex-líbris de Diogo Gaspar, o Palácio da Cidadela, em Cascais. Reaberta ao público em 2011, a antiga residência de Verão da Presidência esteve em obras desde 2004. Gaspar recolheu para si os louros da descoberta do potencial daquele local, onde o museu tem agora uma loja e uma área de exposições temporárias, alargando o reduzido espaço de Belém. Descrito pelo director como estando em “avançadíssima degradação” e “num estado lastimoso”, o espólio da Cidadela é um dos pontos mais referidos pelas fontes contactadas pelo PÚBLICO. Todo o processo de catalogação, e a decisão sobre o que iria ser colocado no museu ou mandado para “abate”, terá cabido a Diogo Gaspar. “A Cidadela foi esvaziada e havia coisas de muito valor”, diz uma fonte. Este é um ponto importante, até para a sua defesa. O advogado Raul Soares da Veiga, que acusou o Ministério Público de alegar “muitas meias verdades e poucas verdades inteiras”, admitiu aos jornalistas que o seu cliente comprou certos bens que tinham sido dados para abate pela Presidência da República.

A professora de História da Arte e de Museologia e Património Maria Isabel Roque cita um dos preceitos do código de ética do ICOM (Internacional Council of Museums): “Os membros da profissão não devem participar directa ou indirectamente no comércio (compra ou venda para obtenção de lucro) de elementos do património cultural e natural.”

“Esta história não podia ter acontecido se o museu estivesse na área acanhada de Belém”, adianta ao PÚBLICO uma fonte da Casa Civil. Aí, todas as obras, incluindo os computadores e as secretárias, estão etiquetadas com códigos de barras. À entrada há um detector de metais e uma revista da PSP. No palácio há ainda um quartel da GNR.

A oferta de Paula Rego

Por isso, agora, José Manuel dos Santos telefonou para Belém mal surgiu a hipótese de ter saído do museu um dos quadros de Paula Rego representando Jorge Sampaio. Não era verdade. As duas versões desse retrato continuam onde sempre estiveram. O que Diogo Gaspar tem em sua casa é um esboço, em papel, desenhado pela pintora e oferecido ao director do museu, com uma dedicatória. A pintora, aliás, não cobrou à Presidência por nenhum dos seus trabalhos.

No museu está também a valiosa espada em ouro maciço oferecida a Sampaio pelo príncipe saudita Khalid Al Faisal. E o relógio de ouro que Eanes recebeu de Juan Carlos de Espanha. Até está o colar de insígnias que o norte-coreano Kim Il Sung ofereceu a Costa Gomes.

O trabalho de Diogo Gaspar na recolha deste espólio é reconhecido por todos. Foi por isso que recebeu o Prémio José de Figueiredo 2006, da Academia Nacional de Belas-Artes, ou o Prémio Europa Nostra.

Raquel Henriques da Silva ficou, por isso, “completamente perplexa” com as notícias sobre a sua detenção. José Manuel dos Santos elogia as qualidades de Gaspar e duvida de que as suspeitas da PJ sobre favorecimento de empresas em ajustes directos de Belém pudessem ter acontecido com as apertadas regras de Belém: “A Presidência tem regras muito rigorosas e precisas. Ninguém paga nada a ninguém se não houver um processo administrativo completo.”

Com o tempo, Gaspar passou a desempenhar outras funções em Belém, que acumulava com a direcção do museu. Substituiu, por exemplo, a decoradora do palácio, passando a disponibilizar obras de arte e móveis para os gabinetes. Tinha também, segundo revelam fontes da Casa Civil, uma voz na organização de cerimónias, como o 5 de Outubro.

A certa altura, passou a endereçar os convites do museu em envelopes com as insígnias da Presidência. Um traço da “mitomania” que lhe apontam os críticos? Ou uma consequência do “prolongamento excessivo do seu cargo, que lhe permitiu dominar bastante bem a máquina de Belém”?

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