A voz própria da CNB foi escutada por Akram Khan
Na temporada 2016/17, a Companhia Nacional de Bailado começa a comemorar os seus 40 anos com uma extensa digressão nacional. Mas as grandes novidades incluem Akram Khan, Israel Galván, João Penalva ou José Capela.
Luísa Taveira gostava que a Companhia Nacional de Bailado (CNB), sediada no Teatro Camões, em Lisboa, fosse também uma casa de poesia. “Para mim, dança e a poesia são praticamente a mesma coisa”, confessa ao PÚBLICO. Daí que, nas últimas temporadas, a programação tenha sido apadrinhada pelas palavras de Sophia de Mello Breyner Andresen e Adília Lopes. Em 2016/17, serão os versos de Ana Hatherly a embalar um conjunto de espectáculos com a assinatura de nomes como Akram Khan, Israel Galván, João Penalva, Rui Lopes Graça, Fernando Duarte ou José Capela, assim como a ambiciosa digressão pensada para chegar a todo o país, num gesto de comemoração dos 40 anos da assinatura (pelo então secretário de Estado da Cultura, e também poeta, David Mourão-Ferreira) do protocolo que, em 1977, oficializou o nascimento da companhia.
A programação da CNB, diz a directora artística, vale-se de um efeito “de bola de neve que a companhia pode aproveitar”: o trabalho desenvolvido em cada temporada ajudará sempre a alcançar objectivos na temporada seguinte. “Há muitos anos que ando atrás do Akram Khan e fiquei muito feliz [com confirmação da sua presença em 16/17] porque tudo isto se faz à medida que vamos conseguindo ter em coreógrafos como Anne Teresa de Keersmaeker ou Ohad Naharin óbvios cartões-de-visita.”
Após um primeiro contacto (na forma de workshop) com os bailarinos da CNB em Outubro passado, Akram Khan, um dos mais importantes coreógrafos da actualidade, acedeu a “pela primeira vez vender uma peça de reportório”, diz Luísa Taveira. A partir desse conhecimento travado com os intérpretes, Khan sugeriu adaptar para um elenco maior do que o original iTMOi (In the Mind of Igor), que terá estreia nacional a 23 de Fevereiro. iTMOi (2013) baseia-se nas dinâmicas e nos padrões rítmicos da Sagração da Primavera, de Stravinski, de que Khan se apropria através do filtro da dança clássica indiana. Será uma primeira colaboração entre o criador e a CNB, na esperança de que, no futuro, possa surgir “uma peça original” para a companhia.
Outro dos momentos altos da temporada está previsto para 2017, ainda com datas a anunciar, e junta o bailarino espanhol da CNB Carlos Pinillos ao seu conterrâneo Israel Galván. O encontro entre os dois deu-se em Sevilha, em Maio passado, já com vista à construção de um espectáculo que se prevê ter uma forte raiz ibérica, ou não fosse Galván reconhecido internacionalmente por, como descreve Luísa Taveira, “resgatar o flamenco para a dança contemporânea”. O projecto corresponde a uma vontade de demonstrar “reconhecimento pelo talento e pela colaboração de alguns bailarinos que deram a esta companhia uma visibilidade incrível enquanto bailarinos principais”. Assim aconteceu também com Barbora Hruskova e A Perna Esquerda de Tchaikovski, peça escrita por Tiago Rodrigues para a despedida da bailarina e interpretada ao vivo com o pianista Mário Laginha, e cujo sucesso leva a que seja reposta a partir de 23 de Março. O compromisso entre Tiago e Barbora, aliás, prevê que esta possa ir adaptando sempre a peça à sua idade, num exercício de constante despedida.
Esta forma de pensar a programação da CNB (no Camões e fora dele) olhando para os seus bailarinos justifica também a concentração destes projectos de escala reduzida entre Março e Julho de 2017, altura em que os 40 anos serão comemorados com uma extensa digressão pelo país, em que Luísa Taveira quis incluir “todos os teatros do continente e das ilhas”, tendo para isso concebido três programas distintos, em função da dimensão das salas – grandes, médias e pequenas. “Achei que era a melhor maneira de celebrar a missão nacional da companhia”, justifica.
A existência de vários programas e a circunstância de o elenco da CNB estar permanentemente a trabalhar, pelo menos, dois espectáculos em simultâneo proporcionam uma “actividade quase em contínuo” e que ascende ao impressionante número de 120 apresentações por ano. Um número para o qual contribui também a reposição de quatro peças de particular popularidade nos últimos anos: Treze Gestos de Um Corpo (Olga Roriz), Será que É Uma Estrela? (Vasco Wellenkamp), Herman Schmerman (William Forsythe) e Minus 16 (Ohad Naharin).
Mais dramaturgia
Ao afirmar que programa ao olhar para os seus bailarinos, Luísa Taveira revela não apenas o cuidado constante de perceber como potenciar as qualidades do numeroso elenco da CNB. É que o público, sublinha, "continua a ser uma incógnita muito grande”. “Acho que cada vez mais vou desaprendendo o que é o público. Sabemos que os títulos são armas muito poderosas, mas para além disso acho que temos de reconhecer que somos muito ignorantes.”
Certo é que uma das marcas da direcção artística de Luísa Taveira – que retomou o cargo em 2010, depois de uma primeira passagem pela CNB entre 1996 e 2000 – tem sido a das recorrentes colaborações com artistas provenientes de outras áreas, de que são exemplo as obras trabalhadas com Tiago Rodrigues, André e. Teodósio ou Cão Solteiro, numa clara aposta de risco. Não negando esta postura, contrapõe, no entanto, a ideia de que à dança parece exigir-se um imobilismo histórico que escapa ao teatro ou à ópera: “Quando vamos ver um Puccini ou um Shakespeare, não estamos à espera de que seja feito como nos anos 50. Não entendo porque é que a dança tem de ser cristalizada naquilo que se estipula que era o clássico nos anos 50 e na União Soviética.”
A associação a outros criadores passou também por um diagnóstico feito no momento do seu regresso à CNB. Luísa Taveira pensou de imediato “temos de criar uma voz própria”. “Um dos grandes dramas das companhias parecidas com a CNB, que são companhias de reportório”, refere, “foi que a certa altura ficaram todas iguais. E então deixaram de fazer digressões porque não era preciso, estavam todas as fazer Hans van Manen, Jirí Kylián, Nacho Duato, todos aqueles coreógrafos que eram uma espécie de globalização". Segundo problema, segundo a directora da companhia: "uma grande lacuna relativamente à dramaturgia”.
Neste âmbito, em 2016/17 haverá propostas como Quinze Bailarinos e Tempo Incerto, projecto do artista plástico João Penalva e do coreógrafo Rui Lopes Graça que, em Outubro, dará arranque à temporada. Tendo integrado em 1973, por um breve período, a companhia de Pina Bausch, João Penalva fixou-se depois em Londres e construiu um percurso nas artes plásticas, caindo a sua ligação à dança no esquecimento. Luísa Taveira quis "recuperá-lo para a dança”. Pediu-lhe que dirigisse e concebesse teoricamente “um ballet branco do século XXI”.
Outro exemplo será La Bayadère, com estreia a 8 de Dezembro, em que Fernando Duarte terá a seu cargo a recriação técnica e estilística do último dos grandes clássicos que faltava à CNB incluir na íntegra no seu reportório, desta feita com cenografia de José Capela (fundador da Mala Voadora). Luísa Taveira lembrou-se de Capela por se tratar de uma história passada na Índia mas imaginada a partir da Rússia imperial, com todas as ilusões que esse olhar distante comporta. “Ele é maravilhosamente mentiroso na sua cenografia e adoro essa qualidade”, justifica. “E gostava que esta Bayadère fosse muito exuberante.”
Em Janeiro será a vez de Bruno Cochat assinar uma viagem multimédia pela História da Dança em 1HD e, antes disso, em Novembro, a CNB voltará a acolher uma proposta de dois dos seus bailarinos, Henriett Ventura e Xavier Carmo, em parceria com São Castro e António Cabrita. Depois de Tábua Rasa, será a vez de Turbulência, numa rara co-criação a quatro mas que, nesta ocasião, será trabalhada para oito intérpretes.
As comemorações dos 40 anos serão abrilhantadas ainda pelo reforço da programação dos estúdios da CNB no Chiado, com a abertura de uma escola destinada a alunos entre os cinco e os nove anos, aulas para adultos e para crianças com necessidades especiais, workshops, espectáculos de bolso e vários outros projectos sob a coordenação geral de Bruno Cochat. A tudo isto juntam-se dois livros: Maria José Fazenda publicará “um livro útil”, em que contará uma “História da Dança ancorada no reportório da companhia” e o projecto A CNB e os Poetas resultará numa recolha de poemas inéditos dos escritores que, ao longo do ano, a companhia convida a assistir aos seus espectáculos.