Thomas Ostermeier, sintomas de ruptura
Thomas Ostermeier, um dos nomes maiores do teatro europeu, regressa ao Festival de Almada com duas impressivas produções: um clássico, A Gaivota, em que a luta geracional convoca visões conflituantes do teatro actual, e Susn, que é toda uma declaração de amor a uma actriz.
Entre Abril e Outubro de 1890, o jovem médico Anton Tchékhov viajou da Sibéria até à ilha de Sacalina, atravessando, no interior de uma carruagem puxada por cavalos e durante três meses agrestes, as enregeladas estepes. Segundo relata o seu biógrafo Donald Rayfield, Tchékhov procuraria através da dureza física da viagem relativizar os seus recentes fracassos artísticos e, em simultâneo, recolher elementos para um livro futuro – passados dois anos, publicaria A Ilha de Sacalina, um lugar que “não tem clima, só mau tempo”. Na colónia penal encontraria muito mais do que material para um livro. Muitos investigadores defendem que durante os meses em que conduziu um censo em Sacalina, foi exposto a formas de vida tão miseráveis que voltaria antes com uma visão desencantada da humanidade da qual não se livrou até ao fim.
O mundo pessoal e artístico de Tchékhov terá sido violentamente abanado, muito para além da alegada desconsideração que passou a votar a A Sonata Kreutzer, de Tolstoi, novela que até então lhe parecia um dos mais prodigiosos exemplos de beleza na escrita. A intensidade da experiência em Sacalina foi mais tarde reconhecida como Tchékhov como tendo afectado todas as suas obras futuras – e isso é algo que o encenador alemão Thomas Ostermeier reconhece ter sido determinante para a sua compreensão dos textos do autor russo.
“A minha leitura de A Gaivota”, declara Ostermeier ao Ípsilon sobre uma das duas peças que apresenta no Festival de Almada (10 e 11 de Julho, Teatro Municipal Joaquim Benite), “é a leitura de uma peça que Tchékhov escreveu depois da viagem, desse momento em que testemunhou a miséria da Rússia, viu pessoas a passar fome, outras a morrer na mais absoluta desgraça.” Durante os dois breves segundos que iniciam a peça, Ostermeier projecta uma fotografia de encarcerados mal agarrados pela vida. Sobre eles uma citação do autor russo: “Toda a minha obra está impregnada da viagem a Sacalina. Quem vai até ao inferno vê o mundo e os homens com um outro olhar.”
Essa forte impressão, nota o encenador e director da Schaubühne desde 1999, aliada aos muitos doentes que Tchékhov atendia gratuitamente e à sua recorrente disponibilidade para angariar e doar dinheiro a bibliotecas escolares, leva Ostermeier a descrevê-lo como “um escritor muito comprometido socialmente, pleno conhecedor das dificuldades sociais na Rússia”. Daí que a escrita de A Gaivota, uma peça fundada no amor e na arte, parida logo a seguir ao seu regresso à normalidade lhe pareça, em certa medida, contraditória. Como podia um homem instalar-se no inferno, conviver com aquela gente e voltar para escrever sobre temas que se diriam tão supérfluos? “É completamente ridículo dedicarmo-nos a conversas intelectuais sobre arte e cultura, tendo sexo por todo o lado, traindo-nos, perante a situação em que vivemos actualmente na Europa”, defende Ostermeier. “Acredito que Tchékhov lhe chamou uma comédia por ser uma comédia trágica.”
A actualidade europeia, aliás, é chamada a palco por Ostermeier ao escolher a personagem Medwedenko, “um tipo pobre, com problemas financeiros e que não obedece a um perfil burguês” para “dar voz aos pobres e indefesos, falando em nome das pessoas dispersas pela Europa.” Quer isto dizer que Medwedenko, ainda mal começámos a embarcar no enredo, aproveita a primeira deixa possível para relatar um encontro com um taxista sírio. Ostermeier não demora muito tempo a deixar claro que o primeiro Tchékhov a que se atira tem o seu nome escrito a fogo e que nenhum clássico está a salvo de tentar explicitar as suas ligações à contemporaneidade.
É um momento de improvisação que suspende por momentos as palavras do dramaturgo e se repete mais à frente quando Treplev se lança numa pequena diatribe apontada ao teatro pós-dramático. Ostermeier nega que essas palavras possam ser lidas como o seu próprio ponto de vista sobre o teatro contemporâneo: “Isso não sou eu, isso não sou eu, isso não sou eu”, repete ao telefone com o Ípsilon. “É o Treplev quem o diz. Talvez até seja o meu ponto de vista, mas não é interessante saber se o é.” É a sua forma de vincar o conflito de gerações que atravessa A Gaivota prolongado para o choque entre um lugar na arte estabelecido, bem-sucedido, canónico e visto como conservador, e um outro que se pretende revolucionário, temerário, reivindicativo de um corte com o passado.
Sangue em palco
Tendo-se afirmado no teatro alemão ao dirigir a Barracke entre 1996 e 1999, onde impôs a sua linguagem crua e violenta em contraste com a polida cena teatral que então dominava o país, Ostermeier construiu o seu perfil de encenador através de autores como Sarah Kane e Mark Ravenhill, privilegiando textos contemporâneos. O reconhecimento internacional acabou por lhe garantir a entrada na Schaubühne, com a qual esteve já presente em Almada (Disco Pigs, de Enda Walsh, em 2002), onde foi expandindo o seu reportório até aos clássicos. O seu Hamlet, em 2008, torná-lo-ia um dos nomes de topo do teatro mundial, à custa de uma encenação em que vinho e comida voavam pelos ares e o público das primeiras filas saía com as roupas manchadas de sangue.
O sangue de um bode jorra também sobre Treplev e a sua amada Nina numa cena ritualística de A Gaivota, os dois criando uma atmosfera sacrificial ao mesmo tempo que ela fala com a voz alterada, preparando-nos para um qualquer estado de hipnose. Arkadina, mãe de Treplev e a actriz reputada, assiste à cena e cospe o seu escárnio: “Hmm, sente-se a avant-garde”, “Uma grande ideia de mise en scène” ou “Querem-nos reeducar, ah vão-nos explicar que é uma representação do teatro.”
Para alguém visto como um enfant terrible do teatro alemão e legitimado pela Schaubühne, o conflito entre linguagens, entre o estabelecido e o desafiante, que é o foco da tensão entre Trigorin (escritor reconhecido, uma celebridade, namorado de Arkadina) e Treplev (jovem autor em busca de legitimação artística) é, naturalmente, um enorme factor de sedução. Nas palavras de Ostermeier, a tragédia presente em A Gaivota vem de “ambos os lados estarem certos mas não conseguirem encontrar uma solução para o problema”. “O Trigorin diz também que há espaço suficiente para ambas as gerações, para se ser artistas nos dois períodos, não há razão para lutar.” Admitindo conhecer bem os dois lados da questão, o encenador declara que a sua perspectiva é semelhante à de Tchékhov, preferindo não tomar partidos e declarar-se “neutral”.
“Não acho que Tchékhov faça na peça um juízo de valor sobre qual a geração artística que está certa e qual está errada”, diz. “Acho que ele tanto é Konstantin [Treplev] como é Trigorin. Como um bom médico, Tchékhov está apenas a fazer um diagnóstico e uma análise da situação, de uma forma muito isenta. Não está a fazer qualquer julgamento, não está a aplicar qualquer tratamento. Está simplesmente a analisar, como um médico ao microscópio.”
Olhado ao microscópio pelo crítico Georges Banu, no livro de Ostermeier Le Thêátre et la Peur, o encenador é descrito como “o sintoma de um estado de crispação que reclama não tanto a medicação para o aquietar quanto os meios para o estimular. O sintoma de uma ruptura reforçada pela audácia de um artista que a assume, que a exaspera inclusivamente. Ostermeier constitui um guerreiro que não hesita em cavar o fosso entre o seu teatro e a doxa instituída das cenas alemãs sempre enamoradas pelas desconstrução e pelas práticas pós-dramáticas.”
A segunda conversa
Thomas Ostermeier cita tanto a recusa de Tchékhov da necessidade de um tema para o teatro – se a vida não tem um tema, porque havia uma peça de ter? –, quanto a famosa tirada de Woody Allen dizendo que “se tens uma mensagem, envia uma carta”. Teatro e cinema, pelo menos aqueles que lhe interessam, argumenta, estão mais próximo do “absurdo da vida, de não sabermos porque andamos aqui, como a vida funciona ou como levarmos uma vida feliz”. Perante a ausência de respostas, prefere que os seus espectáculos se afirmem como conversas com o público.
No Festival de Almada, a segunda dessas conversas acontecerá a 14 e 15 de Julho, no Centro Cultural de Belém, perante uma mulher que numa revolta declarada perante o meio social em que nasceu e cresceu, debate-se com a presença da religião na sua vida. O texto de Herbert Achternbusch seduziu Ostermeier por permitir desenhar a biografia de uma mulher ao longo dos anos – encontramo-la em quatro idades diferentes – e esboçar a “grande demonstração de talento desta extraordinária actriz”. Susn, nome da personagem interpretada num magnífico tour de force de Brigitte Hobmeier, é para o encenador também um espectáculo de uma intensa ressonância pessoal. “Passa-se na região alemã [Baviera] em que cresci, um verdadeiro buraco de conservadorismo”, descreve.
Assente numa ideia da beleza da transformação de Susn ao longo da vida, expondo a suspectibilidade de as convicções se adaptarem e vergarem diante da história de cada um e de uma certa luta quotidiana com o ambiente formativo dos primeiros anos, a visão de Ostermeier construiu-se sem qualquer troca de impressões com Achternbusch, ainda vivo. “Não gosto de trabalhar as peças com os autores”, revela. “De qualquer maneira, sou o único encenador na Alemanha que os respeita, por isso eles não precisam de se preocupar quando faço os seus textos. E, na verdade, quando se ama uma mulher não se quer falar com o pai dela.”