A FLIP da poesia para combater a crise
Na primeira noite da Festa Literária Internacional de Paraty falou-se de poesia e da situação política brasileira. Sem esquecer o Presidente interino, e poeta nas horas vagas, Michel Temer.
Ainda a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) vai no início e já a situação política brasileira e a crise que se vive no país subiram ao palco. Paulo Werneck, ao dar as boas-vindas ao público, que na noite de quarta-feira não encheu a plateia da Tenda dos Autores para assistir à conversa com o poeta Armando Freitas Filho e o cineasta Walter Carvalho, deu conta disso. “Esse ano, para todo o mundo, está sendo muito difícil. É quase um cliché mas é uma realidade”, começou por dizer o curador da festa literária pelo terceiro ano consecutivo, homenageando os seus colegas editores e jornalistas que estão a perder empregos e a enfrentar a crise.
“Nos últimos meses as editoras estão fechando e esses profissionais em boa medida ajudaram a fazer essa festa. Há autores convidados de uma editora, por exemplo, que já foi extinta”, acrescentou. Não se pode esquecer que “crise” e “crítica” são palavras que têm “uma origem comum na língua grega”, lembrou, e que “a crítica, a crítica literária, a auto-crítica, todo o tipo de crítica” são essenciais para se ultrapassarem crises, e por isso muito bem-vindas.
É notório que a euforia de outras edições daquele que é o mais importante evento literário brasileiro desapareceu. Tudo parece estar mais enxuto. A ocupação das pousadas está a 85%. Nas conversas pelas esplanadas e pelos cafés do centro histórico ouvem-se comentários sobre como tudo está excessivamente caro este ano em Paraty.
Há menos intervenção de rua, as exposições no espaço público da cidade não têm a espectacularidade de outros tempos e mesmo o espaço da livraria parece ter-se adaptado à nova realidade. Nela estão expostos todos os livros dos autores que participam na FLIP durante os próximos dias, entre os quais os volumes de crónicas do autor português convidado deste ano, Ricardo Araújo Pereira, que irá também dar “uma aula” sobre Shakespeare e participar na mesa em que cada autor lê um excerto de uma obra escolhida por si. O que não está à venda na livraria da FLIP, contrariamente ao previsto, é o inédito A doença, o sofrimento e a morte entram num bar – uma espécie de manual de escrita humorística, um ensaio sobre o humor em que Ricardo Araújo Pereira está a trabalhar. O livro deveria ser lançado em Paraty pela Tinta-da-China ainda antes de sair em Portugal, mas o humorista não conseguiu ainda terminá-lo.
Muitas das editoras brasileiras que costumavam ter uma casa aberta ao público em Paraty durante os dias da FLIP, caso da Companhia das Letras, ou que organizavam festas muito badaladas deixaram de fazer esse investimento. No entanto, algumas ainda se mantêm, como a Casa do IMS – Instituto Moreira Salles, onde se pode ver uma exposição com fotografias, desenhos, manuscritos e textos da poeta Ana Cristina Cesar (1952-1983), a homenageada deste ano, e a curta-metragem, que lhe é dedicada, Poesia é uma ou duas palavras e por trás uma imensa paisagem, do realizador João Moreira Salles. O director de fotografia desta curta-metragem, realizada já depois da morte de Ana Cristina Cesar, é Walter Carvalho, autor do documentário Manter a linha da cordilheira sem o desmaio da planície (2016), sobre a vida e a obra do poeta Armando Freitas Filho, também exibido a seguir à sessão de abertura com os dois, intitulada Em Tecnicolor.
Foi aliás quando o moderador da conversa, o também poeta Eucanaã Ferraz perguntou a Armando Freitas Filho se a poesia era “a vida passada a limpo”, citando o título de um livro de Carlos Drummond de Andrade, que este respondeu que não e conseguiu uma ovação e gargalhadas. “A poesia, pelo menos a minha poesia, eu a entendo como a que toca todas as coisas, inclusive as coisas monstruosas, as coisas horrorosas. Que pode tocar num Temer por exemplo”, disse, aludindo ao novo Presidente interino do Brasil.
É que nas horas vagas Michel Temer também faz poemas, é autor do livro Anônima Intimidade. E o inusitado discurso que fez na sessão de abertura da Feira do Livro de Frankfurt, em 2013, no ano em que o Brasil foi o país convidado do evento, nunca será esquecido por aqueles que trabalham no meio literário. Completamente fora do contexto, chegou a lamentar que a crítica não lhe dava a atenção que desejava. “Publiquei timidamente. Não recebi críticas mas também não recebi elogios”, disse então num discurso oficial que foi vaiado.
Como se fosse água
Na FLIP, Walter Carvalho, realizador que também adaptou ao cinema o romance de Chico Buarque, Budapeste, contou que foi ao ler o verso de Armando Freitas Filho “uma gaivota passa riscada a lápis” que teve vontade de fazer um filme sobre ele. “Eu não sabia se estava diante de um poema ou diante de uma imagem. E o cinema só existe se existe imagem. Armando costuma dizer que o cineasta Jean-Luc Godard é um poeta. É curioso, porque desde pequeno, na Paraíba, que eu ouço dizer quando alguém faz alguma coisa interessante que é um poeta. Nunca ouvi ninguém dizer: é um cineasta.” Risos na sala.
E Armando Freitas Filho aproveitou para dizer que realizador e poeta ficaram apaixonados durante os sete anos que demorou a produção do filme, que ainda não estreou no circuito comercial mas já tem passado em festivais. “Nunca ninguém me tinha olhado tanto”, brincou. O resultado é um belíssimo filme, cheio de histórias divertidas, como os truques que na década de 60 os homens da geração do poeta, actualmente com 76 anos, usavam para que as meninas não percebessem que estavam com uma erecção quando dançavam com elas. E de outras histórias tristes, como a do dia em que a sua amiga Ana Cristina Cesar se suicidou atirando-se de uma varanda do apartamento dos pais em Copacabana, pouco depois de ter telefonado ao amigo, que não a foi visitar naquele dia porque estava com gripe.
Nesse dia fatídico de 29 de Outubro de 1983, Armando disse-lhe que não iria vê-la porque não queria pegar-lhe a doença; por conta da depressão, a escritora estava muito magra, e o poeta até lhe sugeriu para a animar que saísse de casa e fosse comprar uns sapatos novos. Foi a última pessoa com quem ela falou. Escapou “como se fosse água” pelas mãos da família, dos amigos, e a sua morte foi um acontecimento que a todos marcou para sempre. “Arrasou a natureza toda, porque parece que quando uma pessoa se mata mata tudo à sua volta, inclusive os mais próximos.”
Nesse último telefonema, recordou emocionado Armando Freitas Filho, Ana Cristina Cesar despediu-se para sempre dizendo-lhe: “Keep in touch”.