Prussianas, cataplanas e receitas esquecidas
A chef Justa Nobre juntou-se à investigadora Fátima Moura e ao fotógrafo Mário Cerdeira num livro que quer fixar a tradição e contar as histórias das origens da cozinha portuguesa para, a partir daí, se poder evoluir.
Foi num fim-de-semana de 1959 que Maria de Lourdes Modesto comeu a sua primeira cataplana. A data foi registada pela mais famosa gastrónoma na receita que na altura lhe foi dada por Hermano Batista, proprietário da Estalagem de São Cristóvão, em Lagos, e autor do prato. Era uma cataplana de amêijoas com chouriço.
A história é contada no livro Semear Sabor, Colher Memórias — As Origens da Gastronomia Portuguesa, de Fátima Moura (texto), Mário Cerdeira (fotografias) e Justa Nobre (receitas), edição 20/20. E porque é que nos interessa a primeira vez que Maria de Lourdes Modesto comeu uma cataplana? Porque a história da cataplana é muito mais rica e interessante do que imaginamos.
Associamo-la geralmente ao Algarve, mas Fátima Moura, que é também autora do livro Cataplana Experience, tem vindo a investigar a história deste objecto — saber a sua origem tornou-se quase uma obsessão, confessa no livro — e explica que antes da cataplana havia a prussiana. E bastante mais a norte: nas Beiras, onde era usada para cozinhar caça.
Curiosamente, e apesar de ainda ser possível encontrar receitas para prussianas, esta deixou de se utilizar nas Beiras mais ou menos na mesma altura em que viajou até ao Algarve, no início da década de 1950, pouco antes de Maria de Lourdes Modesto a ter conhecido.
O desejo de traçar a história até ao nascimento da cataplana valeu a Fátima Moura “inúmeros e infrutíferos dias de visualização de fotografias e documentos no Arquivo do Museu Militar”, onde tentou encontrar provas para a tese de que teria tido origem “nos capacetes rejeitados dos soldados da Primeira Guerra Mundial”. Demasiado apertados para as cabeças, os capacetes, juntos dois a dois, poderiam ter sido usados para cozinhar. Mas nada encontrou que permitisse confirmar esta história.
Sobre a prussiana, contudo, existe mais informação. “Encontrei testemunhos orais fiáveis, dos anos 40, segundo os quais alguns caçadores das Beiras as levavam para a caça e outros tinham-nas em casa para cozinhar”, conta ao PÚBLICO. “Hoje estão completamente perdidas nessa região, talvez pela ausência de caçadores. E as peças, como eram em folha, foram deitadas fora.”
Antes de isso acontecer, contudo, houve um homem que fez um modelo que levou para o Algarve, onde os velhos caldeireiros algarvios começaram a fazer em cobre uma nova versão da prussiana, melhorando a forma de fechar as suas metades. São objectos um pouco diferentes e com algumas especificidades. “A prussiana é um forno, funcionava no chão, era coberto com brasas e servia para cozeduras prolongadas a baixa temperatura”, explica. “No Algarve, usam-na para cozeduras rápidas”.
Esta história é um exemplo do trabalho de pesquisa que Fátima Moura fez para este livro. Mas não se trata de um tratado sobre a história da cozinha portuguesa — é um livro cheio de receitas, algumas tradicionais e outras novas criadas por Justa Nobre. E o que os três autores pretendem é que seja (eventualmente) o primeiro de uma série que recupere clássicos da cozinha portuguesa, contando histórias a eles ligadas, e fornecendo uma base essencial a partir da qual se pode evoluir e criar.
“A ideia inicial foi do Mário Cerdeira”, conta Fátima, “que me desafiou a mim e à Justa. A ideia não é fazermos todos só coisas tradicionais, é fixar a tradição para a podermos usar como ponto de partida. É preciso fazer isso de forma rigorosa.”
O livro divide-se em quatro grandes temas: o bacalhau, que levou os três autores numa viagem à Noruega para conhecer os mares de onde vem o peixe que tantas receitas inspirou, e continua a inspirar, aos portugueses; as cataplanas e as suas “primas” das Beiras, as prussianas; a cerveja e as cervejarias; e os pastéis, muito variados, dos doces aos salgados.
No capítulo do bacalhau viajamos até aos fiordes da Noruega, acompanhamos Justa e Fátima numa pescaria (a chef apanhou um escamudo), acompanhamos uma refeição luso-norueguesa em que há bacalhau à Brás mas também lutefisk, bacalhau inteiro seco demolhado em água com soda cáustica, como se costuma consumir na Noruega.
“E”, conta Fátima, “apercebemo-nos de que há hoje uma influência grande da nossa cozinha e da espanhola na cozinha norueguesa do bacalhau, com a introdução do tomate, da cebola, por influência dos operários portugueses e espanhóis que trabalham nas fábricas de processamento de bacalhau.” No meio de tudo isto, a autora ainda esclarece um mistério: quem é Alinanda, que assina o livro A Arte de Bem Comer, editado em 1929 e que inclui uma receita de bacalhau à Brás. Afinal, não é uma pessoa, são duas amigas, Aurora Fernanda Jardim Aranha e Júlia Alice Davim Martinho.
Na parte das cervejas, acompanhamos a sua chegada a Portugal, a forma como se popularizaram num país mais habituado ao consumo do vinho, as primeiras fábricas, a influência dos galegos, a forma como estes foram abrindo casas de pasto, primeiro, e depois restaurantes e como foi surgindo uma série de receitas ligadas a estes estabelecimentos — com destaque para alguns bifes que ficaram na História, como o Bife à Jansen. O livro cita a descrição de Mário Costa em O Chiado Pitoresco e Elegante: “A Cervejaria Jansen (...) tornou-se um refúgio de gente moça, bem regados com a saborosíssima cerveja, tudo servido por criados de indumentária belle époque, pançudos, bonacheirões, bigodeira farta, casacos pretos e grande avental branco em trespasse.”
O capítulo para o qual Fátima Moura confessa ter tido mais dificuldade em encontrar dados que sustentem uma investigação foi o dos pastéis. Mas também aí é de destacar uma curiosidade: uma das mais antigas receitas de pastéis semelhantes aos de bacalhau é a que surge no Arte de Cozinha de João da Mata (1876). Chamam-se pastelinhos fritos à holandesa e, provavelmente por causa desta origem de terras do Norte, levam queijo, neste caso não flamengo mas parmesão.
Assim, no livro, às receitas clássicas como o bacalhau à Brás ou o à Gomes de Sá (que vêm acompanhados pelas respectivas histórias) juntam-se outras que Justa criou de raiz, como um tornedó de Bacalhau com molho de limão, amêndoas e legumes grelhados do qual a chef se orgulha particularmente.
“A ideia aqui é recriar receitas que estão quase esquecidas. Os jovens já não vão consultar os livros antigos, sem fotografias, estão habituados a livros com imagens. Mas quisemos fazer uma ponte entre o passado e o agora. Eu gosto muito de criar, dá-me muito gozo, por isso fiz, por exemplo, umas cataplanas mais modernaças, com produtos que hoje são fáceis de encontrar, como a de frutos exóticos com champanhe e calda de ácer. Os bacalhaus são eternos, há mil receitas, mas o meu tornedó de bacalhau é um prato que acho que ficou espectacular.”
Outra receita que Justa destaca para provar que fazer pastéis não é tão complicado como se pensa é a das ruivinhas de Bohemia (a marca de cerveja foi uma das patrocinadoras do livro). “São umas queijadinhas feitas com cerveja que são a coisa mais simples de fazer. Muitas vezes o que dá mais trabalho é a casca, e as ruivinhas não têm nada disso.”
Mas há também os clássicos pastéis de massa tenra, os rissóis de pescada, os pastéis (ou bolinhos) de bacalhau, os fantásticos pastéis de Entrudo de Trás-os-Montes, as empadas de vitela, as azevias de castanha e vários outros. Porque, afinal, como lembra Fátima Moura, a melhor definição de pastel é, provavelmente, a de Rafael Bluteau que no Vocabulário Portuguez e Latino os descreve como “cousa de massa com golodices”.
E enquanto Fátima procurava pistas em livros antigos ou em testemunhos orais e Justa e a sua equipa testavam na cozinha antigas e novas receitas, Mário Cerdeira andava pelas feiras a comprar pratos e outros adereços para as fotografias. “Enquanto fotógrafo alimentar, vivi um grande trauma nos anos 90, que foi o de ter coisas péssimas para fotografar”, confessa. “Os nossos chefs na altura não tinham técnica nem gosto estético em relação ao que punham no prato.”
Para este livro, Mário teve a preocupação de identificar as adereços certos, para que um prato dos Açores tivesse louça açoriana, um do Norte tivesse louça do Norte, que os bifes das cervejarias tivessem as frigideiras em cobre. “Queríamos retratar exactamente o que estaria à mesa há 50 ou 60 anos. A nossa cozinha tradicional é muito isto e não devemos ter vergonha dela nem da forma como se apresenta à mesa.”