Quem tem medo das marcas do colonialismo no espaço público?
Vasco Araújo quis filmar no Portugal dos Pequenitos para uma leitura crítica da História colonial é ali apresentada, mas o seu pedido foi indeferido. É um sinal de que não lidamos bem com a nossa memória colectiva? Percurso por esse e outros lugares da iconografia do império colonial.
À entrada estão estátuas enormes a representar homens negros, com cabelo e lábios pintados de vermelho berrante, feições exageradas. Num pilar estão esculpidas máscaras africanas, frutos tropicais e macacos. Há ainda mulheres semi-nuas.
A imagem de Portugal imperialista, que deu “mundos ao mundo”, é reforçada a cada passo nas lápides que existem espalhadas pelos pavilhões do Portugal dos Pequenitos, um parque temático inaugurado em 1940 em Coimbra, desenhado pelo arquitecto Cassiano Branco e gerido pela Fundação Bissaya Barreto.
Numa das lápides está inscrito que “os portugueses foram, entre os europeus, os pioneiros dos descobrimentos geográficos e da abertura do mundo, desbloqueando a comunicação entre as civilizações da terra e permitindo o contacto das culturas nos cinco continentes”. Noutra placa: “Os descobrimentos e os encontros ultramarinos promovidos pelos portugueses contribuíram para a construção de uma nova imagem do mundo e de uma ideia de diálogo entre o género humano. Unificou-se a história do planeta terra”.
Dividido por cinco zonas, o Portugal dos Pequenitos apresenta-se assim: países de Expressão Portuguesa (as ex-colónias), Portugal monumental, com a reprodução em escala pequena de vários monumentos nacionais, Coimbra, Portugal insular e casas regionais. A linguagem ao estilo de Estado Novo evoca a “portugalidade”, sem fazer qualquer actualização ou enquadramento histórico do que ali está.
É curioso que no site nenhum dos pavilhões das ex-colónias africanas apareça fotografado. Há em todo o espaço a ideia de celebração da colonização. Escrevem-se à entrada dos pavilhões frases como: “Assim começou a acção civilizadora dos portugueses em Angola – a nossa maior província do Ultramar”. São as lápides da época que ainda guiam os visitantes.
Questionar a História
Para quem entra no parque o anacronismo é óbvio. Em Janeiro deste ano, o artista plástico Vasco Araújo, que queria filmar o Portugal dos Pequenitos e dar uma visão crítica desta abordagem da História, enviou uma carta à Fundação Bissaya com pedido de autorização. Juntou-lhe o guião do projecto. O pedido foi recusado, sem justificação.
Face a essa recusa, Delfim Sardo, coordenador do mestrado Estudos Curatoriais, do Colégio das Artes da Universidade de Coimbra, onde está a exposição de Araújo E daqueles que não queremos saber, enviou uma carta a fazer o mesmo pedido. “Demoraram um mês a responder”, conta Vasco Araújo. E a resposta foi: “Conforme decisão já comunicada ao artista plástico, (….) o pedido foi indeferido”.
Ainda colocou a hipótese de fazer uma reclamação, mas Vasco Araújo preferiu incorporar a recusa na exposição. Numa das três salas de E daqueles que não queremos saber o vídeo Parque Temático, de quase 9 minutos, mostra um ecrã a negro e uma risca vermelha, uma “imagem gráfica da resposta deles, que é uma proibição”, diz o artista. Ouvem-se as vozes e o diálogo, escrito por Vasco Araújo: “”Quem sou eu neste local?” Resposta: “És a negação sistemática do outro, és uma decisão furiosa de privar o outro de qualquer atributo de humanidade.”
Na segunda sala há um texto, escrito na parede, onde é explicado o processo. Estão expostas também as cartas de Vasco Araújo e de Delfim Sardo à fundação, e as respectivas respostas.
Este impedimento mostra “uma instituição que não convive bem com o seu conteúdo”, comenta Vasco Araújo. “Não quer que seja feita uma revisão histórica dos seus conteúdos e por isso bloqueia o que possa pôr em causa aquele espaço que nitidamente é um espaço que está errado e é um embuste, porque perpetua a ideia de que Portugal continua a ter colónias”, nota. “A proibição vem potenciar este tema e pelos vistos continua a ser uma problemática importante de discutir.”
Sobre o Portugal dos Pequenitos a ideia da sua peça era produzir um olhar crítico. “Somos o país europeu com maior número de anos de relação de dominação com África. Logo, temos uma responsabilidade de fazer mea culpa, colocar os conteúdos a céu aberto, dignificar quem nunca foi dignificado, dar voz a essas pessoas. Em vez daquelas esculturas africanas, porque não ter entrevistas a africanos que vivem em Portugal a dizer o que acham sobre aquilo?”, sugere.
Ao PÚBLICO, a fundação justificou a decisão com o facto de o Conselho de Administração ter decidido suspender, até ao final do ano, o atendimento de pedidos externos por estar a concentrar-se nas obras de expansão e renovação do parque - resposta semelhante à que foi dada a outros media na altura da inauguração, no final de Maio. “Não está, nunca esteve em causa a recusa à pessoa do artista Vasco Araújo ou ao seu projecto relativo ao colonialismo ou a outro”, escreve. Diz que já no passado a fundação emprestou ao artista “obras de pintura da sua colecção”. Lembra ainda o acesso dado ao programa Visita Guiada de Paula Moura Pinheiro, emitido na RTP2 em 2015, onde se problematizava a representação do colonialismo, sinal da sua "abertura" a outras visões críticas. A fundação diz também que irá apresentar novas formas de comunicação da informação.
Actualmente, a narrativa do Portugal dos Pequenitos alinha na imagem idílica de Portugal e muito do que é representado está ligado aos símbolos da nação no momento em que é construído, os anos 1940, sublinha José António Bandeirinha, arquitecto que estudou o parque. Defende que qualquer monumento deveria ter informação que o contextualizasse. Mas muitas vezes esses espaços têm “véus a cobri-los por não se falar deles ou se achar que podem ser ‘alindados’ face à contemporaneidade por estarem próximos de nós”, diz. “Há muito essa tentação nos espaços do Estado Novo. E a maior parte das vezes as entidades que os gerem não sabem como lidar com isso. Não há naturalidade na forma como encaramos a nossa memória colectiva mais recente. Há uma ferida colectiva, que todos sentimos, e isso não tem razão de ser: a qualidade dos espaços é independente da entidade do poder que os construiu e geriu.”
A historiadora Filipa Lowndes Vicente, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa que faz pesquisa sobre cruzamentos entre a cultura visual, material e escrita e o colonialismo, visitou recentemente o Portugal dos Pequenitos e impressionou-a o facto de “não existir um discurso sobre o discurso” naquele parque temático. “Vejo o Portugal dos Pequenitos como um documento histórico. Há objectos africanos misturados com fotografias, estátuas de mulheres negras semi-nuas sem qualquer tipo de legenda. É muito interessante do ponto de vista histórico mas é bastante perturbador se pensarmos naquilo sem o filtro de análise”, comenta. No fundo, "as legendas que existem ao lado dos 'pavilhões coloniais’ e que foram escritas na altura da sua construção precisariam - também elas - de uma legenda feita no presente que fosse capaz de as contextualizar historicamente”.
Iconografia do império
O Portugal dos Pequenitos está longe de ser o único espaço público que tem inscrito esse imaginário do império colonial. Entremos, então, num percurso por alguma dessa iconografia.
Estamos no Jardim Botânico Tropical, em Lisboa, e é lá que encontramos Vasco Araújo – foi aqui que filmou as estátuas para uma das peças que também está exposta em Coimbra, O Jardim (2005).
Criado em 1906, chamava-se Jardim Colonial. Segundo a informação oficial, tem 600 espécies de vários continentes, serviu também de pólo durante a Exposição do Mundo Português (1940) - os 14 bustos de rostos africanos e asiáticos que se espalham pelo jardim à entrada de alguns pavilhões agora abandonados são do escultor Manuel de Oliveira.
O dia está quente e os pássaros cantam entre palmeiras. Vasco Araújo, que filmou os bustos em grande plano, explica que lhe interessa trabalhar como artista “a relação com o outro”. “Nós, seres humanos, ocidentais, eurocêntricos, imperialistas continuamos a ter uma má relação com o outro, de não respeito”, afirma. “Há a relação de exotismo que traz um sentimento de atracção e repulsa – desejo e medo porque não reconhecemos. A partir daí geram-se racismos, também alimentados por estes exotismos.”
O Jardim Botânico é um “museu” resultado da ciência colonial porque foi o laboratório das espécies que faziam parte da flora das ex-colónias, lembra Elsa Peralta, antropóloga. Preserva essa simbologia porque nunca foi desconstruída, continua. Não é caso único em Lisboa. Por exemplo, o Príncipe Real “está cheio de espécies exóticas”. E há os jacarandás, “metáfora e paradigma da forma como o império está tão presente e inerte na paisagem” portuguesa.
Elsa Peralta é actualmente investigadora no Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa, onde coordena a linha de investigação Legados do Império e do Colonialismo em Perspectiva Comparada. Faz a distinção entre o que é a iconografia imperial e colonial porque a partir de determinada altura, nomeadamente da II Guerra Mundial, há a construção semântica do império enquanto legado civilizacional que depois se presta a reformulações. Já o adjectivo colonial é usado para se falar da forma de administração do território e de populações. Esse legado imperial está muito mais concentrado, assim, na capital, pois foi pensado de acordo com a ideia de Lisboa como cidade imperial, capital do império, a metrópole.
Por outro lado, Walter Rossa, arquitecto com formação em história da arte e autor de vários artigos sobre património e urbanismo, lembra que a cidade é um espaço de representação por excelência, num espectro que vai “do Estado aos cidadãos”. Também coordenador do programa de doutoramento de Patrimónios de Influência Portuguesa, da Universidade de Coimbra, diz que é necessário clarificar o que “cada um considera colonialismo”: “O que normalmente salta mais aos olhos, e eventualmente agride algumas consciências, é o colonialismo moderno, clássico, que se estabelece a partir da Conferência de Berlim – para nós é depois da independência do Brasil e a partir da construção do império africano”.
No seu espaço público e no seu imaginário, analisa, “Portugal tem muito mais a representação do período dos Descobrimentos e da Expansão do que depois a questão africana do colonialismo mais duro. Esse acabou por ficar mais claramente vincado em Lisboa como sede do império.” Mas de qualquer forma “Portugal foi o primeiro a entrar em África e o último a sair, o que faz com que as representações no espaço público sejam imensas e se confundam”.
De Belém ao Parque das Nações
Em Lisboa há várias centralidades, observa Elsa Peralta, que co-organizou, com Nuno Domingos, a obra Cidade e Império: Dinâmicas coloniais e reconfigurações pós-coloniais (Edições 70). E é possível fazer uma simetria entre a zona de Belém/Restelo, e a zona de Expo. Assinalemos, então, no mapa: o Forte do Bom Sucesso e monumento aos combatentes de guerra do Ultramar, o Mosteiro dos Jerónimos, a Torre de Belém, o Padrão dos Descobrimentos, o Museu de Arte Popular, a Praça do Império, o Museu de Etnologia, o Museu da Marinha, o Museu do Oriente (mais recente), a Sociedade de Geografia, o Museu Militar, e, mais a oriente, o Parque das Nações. A zona de Belém, como a conhecemos, é o resultado da Exposição do Mundo Português. Até hoje mantêm-se os brasões das ex-colónias no jardim da Praça do Império (há um concurso feito pela autarquia para os retirar devido ao custo da sua manutenção).
Como lembra Walter Rossa, o Padrão dos Descobrimentos é dos “descobrimentos”, portanto há “a nuance” da “era áurea” dos descobrimentos portugueses, “que no caso português se aglutina com a questão colonial”. Define o Mosteiro dos Jerónimos como o primeiro grande monumento aos Descobrimentos e ao colonialismo: funcionava como o último ponto de largada das naus, e muitas vezes ali se celebrava a última missa antes da partida. D. Manuel escolhe-o como espaço simbólico para panteão da monarquia, no qual se mostra toda a lógica imperial. “Isso é reafirmado pelo Estado Novo na década de 1940.”
O Estado Novo reafirma o espírito do lugar com a construção da Praça do Império – “chama-se Praça do Império, e nem o pós 25 de Abril conseguiu mudar a toponímia, tão forte”, nota o arquitecto. Mas de todos, o principal espaço de representação do colonialismo português é, para Walter Rossa, a Praça do Comércio. “Lisboa tem várias tentativas de monumentalização desde o século XVI, e o terramoto acaba por permitir essa monumentalização da escala e de abertura; é uma praça aberta ao rio e ao império, com toda a retórica implícita da grande nação em que Portugal se tinha em conta”.
As marcas em Lisboa nem sempre se traduzem em monumentos. Há o caso do “bairro das colónias”: quem circular na Avenida Almirante Reis verá uma placa a indicar a direção com esse mesmo nome. Depois há a estatuária com figuras históricas como Pedro Álvares Cabral, na Estrela, ou zonas que conservam nomes como Poço dos Negros, Rua das Pretas ou evocam o passado como a Avenida de Ceuta.
Elsa Peralta indica, no Porto, o recém inaugurado parque temático The World of Discoveries. Aqui entra-se num barco para percorrer um circuito cheio de reproduções de espécies animais e nativos representados de forma primitiva, veiculando também a ideia da “bondade do império português”. “O projecto colonial envolveu violência sobre populações que não podem ser representados como objectos exóticos”, critica a antropóloga.
Numa outra tónica, refere a Expo 1998, “a cartada final”, que “naturaliza completamente este passado a partir de linguagens de cosmopolitismo que ninguém discute”. Ou seja, “ninguém discute que é preciso preservar os oceanos, os Jerónimos, objectos que são, por natureza, ‘bons’. Há um investimento público feito a partir da ideia de os portugueses terem ido por aí fora como aventureiros. Essa é uma história da carochinha apelativa. A forma como é veiculada, reproduzida e depois recebida é discutível. E a Expo 98 vai actualizar essa épica a partir de uma outra, a dos oceanos, do encontro cultural. No fundo não varia, é o luso-tropicalismo do Gilberto Freyre e a forma como foi reproduzido pelo Estado Novo para justificar que tínhamos províncias ultramarinas e não colónias.”
Como contraponto a esta narrativa do império, não há monumentos a personalidades africanas, por exemplo, ou museus e edifícios que evoquem a história colonial de outra forma, com outro olhar. “Não é por acaso que ainda não há um Museu das Descobertas em Portugal”, um tema complexo de abordar, lembra Elsa Peralta. “Assim como não existe um Museu da Escravatura [o recém inaugurado Núcleo da Rota da Escravatura em Lagos não é propriamente um museu]. Mesmo o Museu de Etnologia é muito preso ao objecto e com exposições muito pouco críticas no seu conjunto, acho que não cumpre a sua função social”.
Walter Rossa fala de "uma espécie de património negativo português” que é o facto de Portugal não reescrever facilmente as narrativas da sua história e de não discutir os seus maiores tabus. “As grandes questões da identidade portuguesa levantam sempre problemas. A historiografia tem vindo a fazer muito e muito bem esse trabalho, mas há uma grande dificuldade em fazer passar essa informação actualizada e de forma correcta para os manuais escolares, obras de divulgação, etc.”
São questões que despertam debates fervorosos. Porquê? Há uma primeira resposta: “Portugal ainda não descolonizou do ponto de vista da imagem – isso já não é novidade nenhuma, já Eduardo Lourenço em 1978 falava destas coisas”, responde Elsa Peralta. “A perplexidade mantém-se, e acho que até se reforçou. A partir de determinada altura, quando Portugal sai do período revolucionário e negoceia a entrada na União Europeia, vai-se buscar a imagem do império reformulada, não enquanto império colonial mas enquanto legado civilizacional despojado, branqueado, uma imagem pacificada e limpa do nosso passado. Tudo isso foi posto debaixo do tapete. Há também uma necessidade celebratória muito grande: alguém vai criticar a Expo 98, o Museu do Oriente? Como é que no senso comum está tão vulgarizada esta bondade do projecto imperial?”
E há uma segunda resposta. “Como antropóloga percebo que isto mexe com as pessoas, com os lugares onde se sentem seguras na sua imagem. Portanto pode ser desestabilizador. É preciso ter cuidado porque as coisas têm um valor. Mas acho que temos que nos envolver na denúncia, temos obrigação de contribuir para a construção de outro senso comum”.