O que nos revelará ainda o Reino Unido?
Do luto ao voto, são escassos dias. Mas a sombra da morte de Jo Cox vai pairar para lá dos resultados.
Se Jo Cox não tivesse sido assassinada, a campanha no referendo britânico continuaria a subir de tom, talvez num crescendo de dramatismo ou violência verbal e até física. Mas o insólito assassinato da deputada britânica (é a primeira vez que um deputado do Reino Unido é morto no exercício das suas funções) veio congelar as animosidades e obrigar a uma reflexão acerca dos caminhos que conduziram até aqui. Não foi apenas obra de um lunático, mesmo que tenha (como agora se terá provado) comprado manuais bombistas a neonazis norte-americanos e tenha agido sozinho, por sua conta e risco (como estarão, aliás, a agir sozinhos vários terroristas cujos actos são depois reivindicados pelo Daesh); foi um sinal de que a violência xenófoba, racial, fascista, terrorista, está a ganhar terreno no espaço europeu, alimentando-se dos apelos nacionalistas e anti-imigrantes para criar raízes. Não é uma coisa organizada, apesar de haver vários grupos de extrema-direita já com alguma estrutura e coesão, mas sim o resultado de um clima onde o ódio se vai tentando sobrepor às ideias e ao debate político, redundando, a espaços, em violência.
Das contas a um eventual “Brexit” no referendo de 23 de Junho resultarão, para o Reino Unido e também para a União Europeia, perdas assinaláveis. A elas voltamos agora, com detalhe, nesta edição onde se analisam nas suas diversas vertentes as consequências de uma saída britânica da União. Alguns números assustam, e a vários níveis. Na banca e nos mercados, no comércio, no investimento, nas migrações, nos orçamentos (britânico e europeu) e numa inevitável onda de austeridade que afectará áreas como a saúde, educação, pensões, transportes defesa ou a segurança. Numa Europa a braços com o terrorismo do Daesh, com a necessidade de acudir aos refugiados, com as oscilantes dívidas públicas e com inúmeros problemas que, por incapacidade ou inércia, não tem conseguido resolver, isto é como fogo em palha.
No momento em que tudo isto se discute, com maior ansiedade e urgência, um tribunal alemão acaba de condenar a cinco anos de prisão um antigo guarda do campo de concentração e extermínio de Auschwitz. Hoje com 94 anos, o guarda nazi foi condenado por cumplicidade no extermínio de pelo menos 170 mil pessoas. Claro que a defesa garantiu que ele não matara nem espancara pessoalmente ninguém. Mas a acusação mostrou que ele era uma peça na máquina de extermínio. Como ele, e numa mera comparação maquinal, os que agora se movem pelo ódio ou pela indiferença, são peças decisivas nos actos seguintes da presente saga europeia. No passado, um passado que muitos entretanto preferem esquecer, passos que na altura pareciam irrelevantes desencadearam morticínios inomináveis. Pessoas comuns, talvez tão anódinas quanto o homem que, num repente, sem que alguém explique o seu acto, assassinou a sangue-frio Jo Cox, tornaram-se assassinos fardados ao serviço de uma “ordem nova” implantada sobre o sangue de milhões. É preciso evitar que tal pesadelo alguma vez se repita.