O terror bateu-lhes à porta e elas abriram sem medo

Margarida e Natália, duas dos quatro gardiens de Paris que vão ser condecorados pelo Presidente neste 10 de Junho, não se sentem heroínas dos atentados de 13 de Novembro. Mas irradiam felicidade pela distinção.

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O teatro Bataclan, palco do terror de 13 de Novembro Daniel Rocha
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Margarida Santos Sousa Daniel Rocha
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Natália Teixeira Syed Daniel Rocha

Margarida Santos Sousa não esconde o orgulho: com a condecoração como Dama da Ordem de Liberdade que recebe esta sexta-feira, em Paris, das mãos do Presidente da República de Portugal, serão cinco as medalhas que conta no palmarés desde aquela noite de 13 de Novembro, em que o terror lhe bateu à porta. “Será mesmo uma medalha?”, pergunta ao PÚBLICO, depois de se ter esquecido que já estava a ficar “um bocadinho cansada de receber jornalistas”.

A viver em França há 36 anos, 25 dos quais como gardienne [porteira] do n.º 87 da Boulevard Lenoir, a uns cem metros do fatídico Bataclan, Margarida não esconde o orgulho e o nervosismo que irá sentir dentro de 24 horas, quando for receber a distinção das mãos de Marcelo Rebelo de Sousa, perante o primeiro-ministro português, o Presidente francês – “para mim só há um Presidente, é o nosso” – e os cerca de 800 convidados para a cerimónia na Câmara de Paris. “Estou feliz com aquilo que está a acontecer, mas, como é que hei-de dizer, nada mudou. Não sou heroína nenhuma, sou como era dantes”.

Aquela noite sim, foi realmente diferente – “e só quem viveu aquilo sabe como foi, a maior parte das coisas não passou na televisão”. Eram cerca das 21h e Margarida estava sentada no sofá, a falar ao telefone com a filha enquanto não começava a sua novela, quando se deu conta que um alvoroço entrara prédio adentro. A porta dos seus aposentos, um pequeno estúdio de quarto, sala, cozinha e terraço, fica mesmo em frente à porta do edifício e ela foi ver o que se passava. Não, não eram convidados para uma festa de anos num dos 27 apartamentos, como pensou: “Era um grupo de jovens em pânico a fugir do Bataclan, este foi o primeiro prédio onde lhes abriram a porta”.

Até esse momento, Margarida não tinha dado conta do que se passava ali ao lado. Mas quando viu o terror no rosto dos jovens, o sangue “e outras coisas” orgânicas que traziam na roupa, percebeu que era grave. “Uma rapariga tinha duas balas nas costas, deitou-se ali no sofá. Como eu sabia que havia médicos e enfermeiros no prédio, fui chamar por eles ao terraço”, conta. Depois vieram os bombeiros. A rapariga sobreviveu, os tiros não tinham atingido nenhum órgão vital. Mas tinha visto o companheiro morrer a seu lado no Bataclan.

Este foi só o primeiro grupo a refugiar-se naqueles corredores. Quando apanhavam uma porta aberta, como ali, os sobreviventes do atentado àquela sala de espectáculos entravam, em pânico. “Pediam para fechar portas e janelas, até cortinas e luzes, tinham medo que viessem atrás deles”. Mas atrás só vinham outros em fuga, cerca de 40 no total abrigaram-se ali, oito feridos. Margarida então já ouvia os tiros, sobretudo o assalto final. "Parecia fogo de artifício, trrrátátátátá, não parava”.

Quando parou, vieram as sirenes, os bombeiros, os corpos deitados na rua. Dentro do prédio, quando todos já tinham saído, perto das 4h30, ficou o sangue no chão, nas paredes, nos elevadores. Margarida então foi limpar tudo, e não apenas porque depois de seco custa mais a sair: “Há crianças no prédio, eu não queria que, no dia seguinte, encarassem com aquele espectáculo”.

Uma enfermaria no pátio

Do outro lado do Bataclan, outra gardienne portuguesa viveu momentos ainda mais intensos. Naquela noite de sexta-feira 13, Natália Syed estava no portão do complexo onde trabalha à espera da filha. Iam tomar um café ao… Bataclan. Mas Letícia, 18 anos, demorou a arranjar-se e entretanto começou a confusão. Ao princípio, Natália pensou que era fogo de artifício. “Comecei a ver pessoas a correr sem sentido, a gritar… Depois veio a polícia, e os bombeiros, perguntaram se o pátio era grande”. Era o suficiente para ali se improvisar uma enfermaria ao ar livre, como outras houve nas redondezas.

Cerca de 80 pessoas devem ter passado por aquele pátio naquela noite. Quatro saíram de lá sem vida. “Havia gente por todo o lado, nem se via o chão, os mais feridos estavam ao fundo, as ambulâncias iam levando alguns, outros iam chegando. Havia pessoas de todas as idades, não eram só jovens”. Natália e o marido Gabriel, de origem paquistanesa, ajudavam no que podiam: traziam cobertores, toalhas, copos de papel, água, sumos… Alguns estavam apenas em choque, esses Natália levava para dentro da sua pequeníssima casa com sardinheiras nas janelas, viradas para o pátio.

Um deles estava muito pálido, tinha-se perdido dos amigos. Pediu para ir à casa de banho e, quando atravessou a cozinha, Natália e Letícia viram que tinha a coxa aberta - “com carne solta por trás, nem sei como conseguia andar”. Desmaiou à saída, pouco depois. Foi um dos que mais a impressionaram. Assim como a rapariga que fazia 18 anos naquele dia, o bilhete para o espectáculo dos Eagles of Death Metal tinha sido um presente do namorado e de repente ela estava ali, aterrorizada: “Tinha um rasto de sangue na cabeça, uma bala passou-lhe de raspão. Entrou aqui e pediu um abraço. ‘Só quero um abraço porque estou viva’, disse-nos”.

Leonel, 11 anos, o filho do meio de Natália e Gabriel, estava a ver o França-Alemanha na TV, outro dos alvos dos extremistas mas onde não se consumou o atentado. Quando aquele hospital improvisado se instalou à sua porta teve medo, confessa. Os pais não quiseram que viesse ver o que se passava, mas ele ajudou dentro de casa: “Servi água, cafés e dei muitos abraços”. Na sexta-feira vai com os pais e irmãos à Mairie de Paris pela segunda vez este ano: em Janeiro, a autarca Anne Hidalgo condecorou todas as pessoas, de muitas nacionalidades, que ajudaram as vítimas dos atentados de 13 de Novembro.

O casal Syed tem os diplomas e medalhas de mérito da Câmara de Paris em cima de um pequeno móvel da sala, onde arranjarão espaço para a condecoração que Natália Teixeira, filha de portugueses nascida em Paris há 38 anos, vai receber das mãos de Marcelo Rebelo de Sousa.

Margarida Sousa Santos guarda as suas medalhas dentro de um móvel: além da distinção da Mairie, já foi condecorada em Março pela Câmara de Penafiel, onde foi recebida “como uma rainha” e teve outra surpresa: uma amiga da juventude, da qual mal se lembrava, esteve nessa cerimónia e levou-lhe outra medalha onde se lê “Ao emigrante, com amor”. A quarta distinção veio do Correio da Manhã: Margarida foi escolhida entre os leitores do diário para o primeiro lugar dos “Heróis Civis” do ano.

A quinta recebe-a hoje, ao lado de Natália e de Manuela Gonçalves e José Gonçalves, o casal de portugueses que também abriu as portas do prédio que guardam junto ao Bataclan mas não quis falar com jornalistas. Talvez porque, imaginam Margarida e Natália, nos seus prédios há muita gente que só quer esquecer aquela noite. Mas a generosidade destes portugueses feitos heróis por acaso é que já não será esquecida.

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