Fantasma dos emails volta para assombrar Clinton, desta vez invocado pelo próprio governo

Relatório do inspector-geral do Departamento de Estado desmente versão da candidata do Partido Democrata. Quando foi secretária de Estado, Clinton não pediu para usar apenas o seu email pessoal e teria visto esse pedido negado.

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Hillary Clinton tinha um servidor em casa Tommaso Boddi/AFP

A candidatura de Hillary Clinton à presidência dos Estados Unidos, vista há apenas um ano como uma caminhada imparável em direcção à Casa Branca, sofreu mais um duro golpe, para além da surpreendente campanha do senador Bernie Sanders e da entrada em cena de um buldózer chamado Donald Trump.

Num relatório feito a pedido do actual secretário de Estado, John Kerry, o gabinete do inspector-geral do próprio Departamento de Estado arrasa a forma como Hillary Clinton fez uso do seu email pessoal para trocar mensagens sobre assuntos profissionais durante os quatro anos em que liderou a política externa na Administração Obama, entre 2009 e 2013.

O relatório de 83 páginas não fala de ilegalidades, nem abre a porta a que a antiga secretária de Estado venha a ser acusada formalmente de qualquer crime, o que poderia afastá-la da corrida à nomeação pelo Partido Democrata – para isso está em curso uma outra investigação, do FBI, que ainda não terminou mas que também não deu indícios da existência de qualquer crime.

Servidor em casa

O que está em causa é um comportamento à margem das regras instituídas no Departamento de Estado, e na generalidade da Administração Obama, que pôs em causa a segurança das comunicações – durante os quatros anos em que exerceu as funções, Hillary Clinton usou exclusivamente um endereço de email pessoal para assuntos profissionais e da sua vida privada.

Para além disso, o relatório do gabinete do inspector-geral do Departamento de Estado desmente várias declarações públicas que Clinton foi dando desde que o caso foi revelado, em Março de 2015. Numa primeira reacção, a antiga secretária de Estado disse que usou o seu email pessoal com autorização do Departamento de Estado, e que não fez nada que vários dos seus antecessores não tivessem feito; mais tarde, sob pressão, reafirmou que não fez nada de ilegal, mas pediu desculpa e admitiu que cometeu um erro de avaliação.

Mas os investigadores dizem que não encontraram qualquer prova de que Hillary Clinton – ou alguém em seu nome – tenha pedido autorização para usar o email pessoal para questões profissionais, e sublinham que os responsáveis pela segurança informática do Departamento de Estado não teriam autorizado qualquer pedido nesse sentido.

Para além disso, e com base nos interrogatórios a vários funcionários, os investigadores dizem que pelo menos dois técnicos manifestaram a sua preocupação em 2010 junto de um responsável, recebendo como resposta uma advertência para "nunca mais voltarem a falar do sistema de email pessoal da secretária [de Estado]".

Durante os quatro anos em que desempenhou o cargo de secretária de Estado, Hillary Clinton usou sempre um endereço de email pessoal para todas as suas comunicações, a partir de um servidor fisicamente localizado na sua residência em Chappaqua, no estado de Nova Iorque. Segundo as regras de segurança – que o relatório publicado esta semana diz serem do conhecimento de todos os funcionários –, responsáveis como Hillary Clinton devem usar o seu endereço oficial, através dos servidores do Departamento de Estado, por dois motivos principais: por um lado, para haver mais garantias de segurança contra possíveis ataques; por outro, para facilitar e tornar mais transparente a recolha de todas as mensagens em nome do Departamento de Estado para serem arquivadas.

O relatório lança também duras críticas a Hillary Clinton em relação aos passos que tomou para emendar a situação – a actual candidata à nomeação pelo Partido Democrata disse que colaborou com os investigadores e que entregou todos os emails profissionais ao gabinete do inspector-geral assim que terminou o seu mandato como secretária de Estado.

Mas os investigadores desmentem essa versão – Clinton não entregou os emails trocados durantes os seus primeiros três meses no Departamento de Estado; não aceitou ser interrogada pelo gabinete do inspector-geral; e só entregou os emails quase dois anos depois, debaixo de forte pressão do Congresso e da opinião pública.

Campanha fala em situação normal

O relatório não se limita à actuação de Hillary Clinton, analisando também a atitude de quatro dos seus antecessores e do seu sucessor – Madeleine Albright (1997-2001), Colin Powell (2001-2005), Condoleezza Rice (2005-2009) e John Kerry, que tomou posse em 2013.

De todos, apenas Hillary Clinton e Colin Powell usaram exclusivamente os seus emails pessoais para todos os tipos de comunicações (apesar de não ter um servidor em casa), sendo este exemplo aproveitado pela campanha de Hillary Clinton para desvalorizar o relatório.

"O inspector-geral documenta que a utilização do email por parte de Hillary Clinton é consistente com a prática de outros secretários e altos funcionários do Departamento de Estado, que também usaram o seu email pessoal", lê-se num comunicado da campanha de Clinton.

Mas o relatório salienta que apenas Colin Powell fez o mesmo, e numa época em que as preocupações de segurança informática não eram tão exigentes como têm sido nos últimos anos – Madeleine Albright não usava email porque não era o método de comunicação privilegiado no final do século passado; Condoleezza Rice disse que não usava email (nem pessoal nem profissional) por opção; e John Kerry disse que chegou a responder a emails enviados de contas oficiais a partir do seu email pessoal, mas que deixou de o fazer quando foi alertado pelos seus conselheiros.

Ainda que não tenha sido cometida qualquer ilegalidade (o relatório é bastante crítico da atitude do Departamento de Estado no geral e recomenda várias mudanças de comportamento), Hillary Clinton pode sair mais fragilizada em termos de imagem perante a opinião pública, num momento crucial da campanha no Partido Democrata e das eleições para a Casa Branca – numa sondagem da ABC News e do jornal Washington Post publicada no domingo passado, 53% dos inquiridos manifestaram uma opinião desfavorável em relação a Clinton; numa outra sondagem, do New York Times e da CBS News, 64% dos inquiridos disseram que não consideram Hillary Clinton digna de confiança, a maioria devido à forma como tem gerido a questão dos emails.

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