Parlamento vai apertar regras a deputados que acumulam com advocacia
Maioria dos partidos está de acordo em proibir deputados de intervirem em processos judiciais a favor ou contra o Estado, seja como advogados individuais ou integrados em escritórios.
Os deputados que acumulam funções com as de advogado numa sociedade vão passar a ter regras mais apertadas nos processos em que há envolvimento do Estado. Essa é, no geral, uma das propostas feitas por PS, PSD, BE e PCP para reforçar a transparência dos cargos políticos e altos cargos públicos. Até agora, as incompatibilidades dos deputados só abrangiam os casos em que estes trabalhavam como advogados a título individual, o que permitia aos parlamentares que trabalham em escritórios de advocacia escapar pela malha larga da lei. O CDS-PP e o PS são omissos quanto às sociedades comerciais, mas proíbem qualquer envolvimento em processos a favor ou contra o Estado, ou mesmo a prestação de consultadoria ou assessoria a entidades públicas.
Com algumas diferenças na formulação legislativa, os partidos parecem convergir na necessidade de separar de forma mais vincada as funções de deputado e as de advogado ou de outras profissões na relação dos parlamentares com o Estado. Actualmente, os deputados-advogados com sociedades em nome individual já não podem participar em processos contra o Estado. Agora, as propostas de todos os partidos querem alargar esse impedimento a todos os casos em que uma das partes seja o Estado. É ainda partilhada por todos os partidos a intenção de proibir, no âmbito do trabalho nesses escritórios, a prestação de serviços de consultadoria ou assessoria.
Todas as propostas prevêem também o alargamento da incompatibilidade à pessoa com quem o deputado vive em união de facto, e não só ao cônjuge. Actualmente quase duas dezenas e meia de deputados assumem manter em simultâneo actividade de advogado fora do Parlamento.
Luís Marques Guedes, deputado coordenador do PSD na comissão da transparência, lembra que o actual quadro legal remonta aos anos 80, quando predominava o exercício da advocacia em escritórios individuais. Hoje dominam as sociedades de advogados e é por aí que os partidos querem legislar. Marques Guedes não quer centrar a questão na advocacia, até porque há outras situações de conflito de interesses, como é o caso de ateliers de arquitectura ou de engenharia que apresentam projectos às autarquias e que acabam por ser analisados por departamentos em que trabalham pessoas dessas empresas. De qualquer forma, o PSD está disponível para afinar as propostas em comissão. “Espero que se faça essa discussão na comissão de forma desapaixonada. Isto não é contra os advogados nem contra os engenheiros”, diz o ex-ministro dos Assuntos Parlamentares.
No caso do projecto do CDS-PP, o texto especifica que a participação em processos não pode existir, seja “a favor ou contra o Estado”. “Nós consideramos que quem fiscaliza e tem controlo sobre o Estado não deve trabalhar para o Estado, contra ou a favor”, justifica o centrista Telmo Correia.
A proposta do PCP vai mais longe na restrição e alarga-a aos negócios, impedindo que um deputado possa celebrar contratos com o Estado ou empresas públicas, mesmo através de associações ou fundações. O deputado fica impedido da prática de “actos económicos, comerciais ou profissionais”, directamente ou por intermédio de “entidade em que detenha participação relevante” (mais de 10% do capital), nos quais intervenha o Estado. Jorge Machado, do PCP, diz que a intenção “não é penalizar advogados nem engenheiros”, mas admite que é na classe dos primeiros que se encontra “o grosso dos problemas”.
À luz das propostas que foram entregues na comissão da transparência, os partidos parecem estar de acordo em restringir as funções que os deputados podem acumular. Ficam assim proibidos de exercer ao mesmo tempo as funções de deputado e as de, por exemplo, presidente, vice-presidente ou vereador, a tempo inteiro ou meio tempo, em câmaras municipais. Os partidos também querem, em uníssono, alargar a incompatibilidade de funções a membros de entidades administrativas independentes, como as entidades reguladoras. O PS especifica ainda que os deputados não podem trabalhar, em simultâneo, na função pública. E, tal como o BE, propõe que não possam integrar gabinetes ministeriais.
Em cima da mesa da comissão está também o regime de incompatibilidades para o deputado ou titular de cargo político e alto cargo público que deixa essas funções. Neste ponto, há uma clivagem entre a direita e a esquerda. O PCP e o BE proíbem a passagem para empresas, públicas ou privadas, que prossigam actividades no sector em que o político tenha tido responsabilidade, sem admitirem quaisquer excepções. Já o PSD limita essa proibição às empresas com as quais essa pessoa tenha tido “directa interacção”. Mas mantém os actuais critérios que são os da empresa em causa ter recebido benefícios fiscais contratuais ou ter sido alvo de processo de privatização durante o mandato.
A bancada socialista acrescenta que os políticos devem deixar de poder, num período de três anos, trabalhar ou de serem consultores em organizações internacionais com as quais se tenham relacionado institucionalmente em representação do Estado português. Mas há excepções: instituições da União Europeia e ONU ou se entrar naquelas organizações por concurso ou indicação governamental.
No chamado período de nojo, os projectos também divergem. Apesar de BE e PCP proporem um alargamento para respectivamente seis e cinco anos, PSD, PS e CDS concordam com os actuais três anos.
Caso Maria Luís
Apesar de haver pontos importantes em comum, os partidos têm seis meses para se entenderem na comissão eventual sobre o reforço da transparência no exercício de funções públicas criada por proposta do PS. O tema da transparência saltou para cima da mesa quando a ex-ministra das Finanças e actual deputada Maria Luís Albuquerque foi contratada como administradora não-executiva do grupo internacional de gestão de dívida e análise de risco Arrow Global, por cinco mil euros por mês, para prestar serviço de consultadoria. Os deputados de esquerda clamaram que se tratava de uma incompatibilidade, mas a subcomissão de Ética acabou por aprovar um parecer que concluiu que a contratação é compatível com o exercício das funções de deputada e não colide com o facto de Maria Luís ter sido ministra da tutela.
Em cima da mesa estão, além das questões do estatuto dos deputados, matérias como as incompatibilidades e impedimentos dos altos cargos públicos, o controlo da riqueza de políticos e cargos públicos, o enriquecimento injustificado e o lobbying. À esquerda os partidos dizem que não houve conversas prévias sobre as propostas; à direita haverá, no PSD, algum desconforto sobre a proposta das incompatibilidades. Para já, as dezenas de audições propostas pelos vários partidos vão começar dentro de uma semana, no dia 25.