Insultos e ameaças em Las Vegas: bem-vindos a uma convenção do Partido Democrata

A violência já é uma imagem de marca nos comícios de Trump. A profunda divisão entre apoiantes de Hillary Clinton e Bernie Sanders pode ter consequências nas eleições gerais de Novembro.

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Hillary Clinton e Bernie Sanders durante um debate em Março Jim Young/Reuters

Agora que os principais líderes do Partido Republicano começam a engolir um sapo chamado Donald Trump como seu porta-voz nas eleições presidenciais nos Estados Unidos, as atenções viram-se para o outro lado da barricada, onde os apoiantes mais fervorosos do senador Bernie Sanders prometem levar até ao fim a luta contra a princesa do Partido Democrata, Hillary Clinton. O ponto alto dessa batalha aconteceu no fim-de-semana passado, no estado do Nevada, onde a convenção do partido foi estável apenas na medida em que acabou como começou – com insultos, acusações de fraude eleitoral a favor de Clinton e intervenção da polícia.

Os vídeos captados durante a convenção estadual do Partido Democrata, que decorreu em Las Vegas, mostram um cenário não muito diferente de alguns comícios de Trump, só que neste caso os distúrbios aconteceram entre eleitores registados no mesmo partido.

Ao descontentamento com os políticos tradicionais – que são culpabilizados pelo agravamento das desigualdades –, somou-se o facto de muitos eleitores só agora terem percebido que as regras para a escolha dos candidatos oficiais dos partidos são, no mínimo, tão complicadas como as letras pequenas daqueles longos contratos que ninguém lê, e feitas à medida dos nomes teoricamente mais capazes de agradarem a independentes e até a alguns eleitores do partido adversário nas eleições gerais. No caso do Partido Democrata, há um ano poucos duvidavam de que esse nome era Hillary Clinton.

Com a entrada em cena de Bernie Sanders e da sua proposta de uma revolução política para reduzir as desigualdades, os eleitores do Partido Democrata dividiram-se em dois campos muito distintos – para muitos apoiantes de Sanders, Clinton é tão responsável por essas desigualdades como as principais figuras do Partido Republicano e os especuladores de Wall Street; para muitos apoiantes de Clinton, Sanders é um populista incendiário que pode dividir o país, uma espécie de Trump da extrema-esquerda.

Foi neste caldeirão de descontentamento com o mundo e de desconhecimento sobre a forma como operam as máquinas partidárias nos EUA que se cozinhou a convenção do Partido Democrata no Nevada – o último passo do complexo e confuso processo de distribuição de delegados por cada um dos candidatos.

Até ao último delegado 

A votação no estado realizou-se no já distante dia 20 de Fevereiro, através do sistema conhecido como caucus (reuniões que começam por volta das 19h, em que participam apenas eleitores registados no partido e onde se discute muito antes de se contar os votos), mas esse foi apenas o primeiro de três passos. Nesse dia, Hillary Clinton recebeu 52,6% dos votos e Bernie Sanders ficou com 47,3% – à partida, a antiga secretária de Estado receberia 20 delegados e o senador ficaria com 15.

Mas os números que todos vemos nas notícias no final de cada votação são apenas estimativas baseadas nas percentagens de voto. Depois desse primeiro passo, cada um dos condados do estado do Nevada realizou a sua própria convenção, e foi neste segundo passo que aconteceu o que muitos apoiantes de Bernie Sanders acreditaram ter sido uma reviravolta.

Como muitos dos apoiantes de Clinton que foram escolhidos no caucus de 20 de Fevereiro para a representarem nas convenções dos condados não apareceram nessas reuniões, Sanders conseguiu enviar mais representantes do que a sua adversária para a convenção estadual – a tal que se realizou no fim-de-semana passado e que acabou por decidir definitivamente quantos delegados seriam atribuídos a cada candidato.

À partida estavam em jogo 35 delegados, mas 23 deles foram distribuídos logo no primeiro passo – 13 para Clinton e dez para Sanders. A convenção estadual, em Las Vegas, serviu para distribuir os restantes 12. Ora, se as convenções nos condados tivessem decorrido como era previsto (se todos os representantes de Clinton tivessem comparecido), as contas seriam fáceis: desses 12, sete iriam para Clinton e cinco iriam para Sanders, num total de 25-15 a favor da antiga secretária de Estado.

Mas, segundo os apoiantes do senador, esse cenário inicial teria de ser alterado por causa da tal suposta reviravolta no segundo passo – os representantes de Sanders esperavam que o seu candidato ficasse com 17 delegados e que Clinton amealhasse 18.

Os problemas começaram logo na manhã de sábado, quando a responsável pelos trabalhos da convenção, Roberta Lange (uma apoiante de Hillary Clinton), quis validar o número de representantes de cada candidato que estavam na sala. A contagem final ficou em 1695 em nome de Clinton e 1662 em representação de Sanders, só que os apoiantes do senador começaram a protestar de forma veemente por dois motivos: porque a diferença entre os gritos de "aprovado" e "não aprovado" não foi perceptível; e porque muitos representantes estariam ainda à espera para entrar na sala.

As acusações de manipulação subiram de tom quando foi anunciado que 56 apoiantes de Sanders tinham sido impedidos de entrar na convenção, porque não tinham qualquer documento de identificação ou não se tinham registado como eleitores do Partido Democrata até ao dia 1 de Maio, como está definido nas regras – se a maioria desses apoiantes tivesse sido autorizada a entrar, Sanders teria mais pessoas do seu lado do que Clinton e poderia sair de lá com três delegados a mais para a convenção nacional, que vai decorrer em Filadélfia, em Julho.

Fosse qual fosse o resultado no Nevada (20-15 ou 18-17), Clinton manteria sempre a vantagem, mas esse facto só reforça a ideia de que a tão desejada união que o Partido Democrata espera ver à volta de um candidato, para ir com tudo para cima de Donald Trump, ainda está muito longe de ser alcançada.

No total, até esta terça-feira (antes das primárias no Kentucky e no Oregon), Hillary Clinton tem uma vantagem praticamente insuperável no número de delegados para a convenção nacional (1716 contra 1433, sendo necessários 2383 para garantir a nomeação), e a sua vitória deverá ser apenas uma questão de tempo – para dar a volta à situação, Bernie Sanders teria de derrotar a sua adversária por margens gigantescas em dois terços dos estados que faltam, incluindo a Califórnia, com os seus 546 delegados em jogo.

Para além da vantagem entre os delegados conquistados estado a estado (que não têm liberdade de voto na convenção nacional), Clinton tem também uma enorme vantagem entre os chamados "superdelegados", os mais de 700 membros do Partido Democrata que podem votar como entenderem (até agora, 524 declararam que vão votar em Clinton e apenas 40 vão apoiar Sanders, o que alarga de forma considerável a vantagem da antiga secretária de Estado – 2240 contra 1473).

Caso isolado ou 1.º round?

Durante grande parte do fim-de-semana, o que aconteceu em Las Vegas ficou em Las Vegas, já que poucas linhas chegaram aos jornais e às televisões. Mas a história ganhou tracção no início da semana e vários analistas começaram a questionar se a confusão no Nevada foi mais grave do que um episódio isolado – uma espécie de pequeno abalo que pode anteceder um terramoto na convenção de Filadélfia, com todas as implicações que uma reunião magna com cobertura televisiva nacional e internacional pode ter na união do partido na batalha contra Donald Trump em Novembro.

"A percepção de que a Comissão Nacional Democrática deu todo o seu apoio institucional a Clinton apenas aprofundou a divisão interna no partido. A ala Sanders está furiosa, e com toda a razão", escreveu Sean Illing, colunista do site Salon e antigo professor universitário de filosofia e de política.

No mesmo site, Peter Gaffney, professor universitário de filosofia, cultura visual e esfera pública, e apoiante de Bernie Sanders, decretou o fim da era do voto útil e do menor dos dois males na política americana, depois de olhar para as várias manifestações de raiva, descontentamento e desilusão na actual campanha.

"Como sempre, a base do Partido Democrata quer esperar até ser tarde demais e então crucificar o mensageiro – essa tem sido a nossa estratégia desde que Ralph Nader 'estragou' a eleição [do candidato do Partido Democrata, Al Gore] em 2000. Não será altura de tentarmos algo diferente? A vida política de um país é como um relacionamento amoroso. Quanto mais se ignora a crise, mais ela se agrava. E não tenham dúvidas – Donald Trump e os seus comícios com sabor a camisas castanhas são também um sintoma desta crise."

Mas a convenção no Nevada não se ficou pelas acusações de fraude e por momentos em que se esteve à beira de uma cena de violência generalizada – a responsável do partido no estado, Roberta Lange, tem recebido ameaças de pessoas que diz serem apoiantes de Bernie Sanders, e que a acusam de ter favorecido Hillary Clinton.

"Tem sido abjecto. São mensagens com ameaças, contra a minha família, a minha vida, os meus netos", disse Lange ao New York Times. A responsável disse que recebeu mais de mil telefonemas e três mensagens de texto por minuto desde sábado à noite. Numa delas, a pessoa disse saber onde os netos de Lange estudam; noutra, alguém disse que a responsável devia ser "enforcada na praça pública".

As reacções contra o establishment do Partido Democrata chegaram mesmo à descrição sobre a Comissão Nacional Democrata na Wikipédia. Esta terça-feira foram feitas várias alterações ao texto, a descrever o partido como uma "organização desenhada para fazer com que Hillary Clinton seja eleita".

"A Comissão Nacional Democrata é uma empresa privada, desconhecida do povo americano, que rege o Partido Democrata dos Estados Unidos. O partido tem sido criticado por alterar as regras, apoiar candidatos e manipular eleições. Costumam apoiar um candidato que é apoiado por aquilo que é conhecido como os 1%, também conhecidos como os multimilionários americanos", lia-se numa das primeiras alterações, que ficam registadas no histórico da enciclopédia online.

Um porta-voz de Bernie Sanders, Michael Briggs, disse que o senador condena todo o tipo de violência e aconselhou o Partido Democrata a dar resposta à indignação de todos os eleitores. "O senador acredita que o Partido Democrata deveria encontrar uma forma de acolher as pessoas que têm sido estimuladas pela sua campanha", cita o New York Times.

Risco de divisão em Novembro

Seja qual for o resultado das primárias no Partido Democrata (se Clinton confirma a nomeação ou se Sanders opera uma inesperada reviravolta), o que está em causa é a união de um partido que se julgava estar mais pacificado do que o seu histórico rival, atirado para o meio de uma guerra civil entre mais facções do que se julgava possível existirem: o establishment actual e as suas referências Lincoln e Reagan; o movimento ultraconservador Tea Party; o populismo ultranacionalista de Donald Trump; e uma mão cheia de alas que juntam um pouco de cada uma delas.

No Partido Democrata não há tantas facções, mas muitos apoiantes de Bernie Sanders puseram em marcha um movimento que é conhecido como Bernie or Bust. Se Sanders não for nomeado, os apoiantes deste movimento têm duas hipóteses: ou escrevem o nome do candidato no boletim nas eleições gerais, ou votam no candidato dos Verdes.

À luz dos acontecimentos do fim-de-semana no Partido Democrata, sai reforçado um alerta do jornalista Bruce Shapiro na revista The Nation, dirigindo-se a quem está convencido de que Donald Trump não tem hipóteses de ser o próximo Presidente dos Estados Unidos: "O caminho de Trump para uma vitória improvável mas possível aponta numa única direcção: a mesma fraca afluência às urnas que fez dele o nomeado do Partido Republicano. Por outras palavras, transformando as eleições gerais numas primárias."

Dando como certa a nomeação de Hillary Clinton pelo Partido Democrata, Shapiro considera que a antiga secretária de Estado deve resistir à tentação de cortejar a direita conservadora, frisando que os tempos da frase de campanha "É a economia, estúpido", que ajudou Bill Clinton a vencer as eleições há 24 anos, deve ser enterrada: "Se a candidata Clinton quiser ser a Presidente Clinton – e se quiser garantir o apoio do Congresso para governar –, tem de começar por admitir a diferença essencial entre 1992 e este ano. Em 2016, a principal mensagem entre os eleitores do Partido Democrata e do Partido Republicano é 'É a desigualdade, estúpido'. Viragens à direita não conseguem dar resposta a esta realidade."

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