Homofobia: “Sermos desprezadas por tanta gente uniu-nos mais”

Portugal está entre os países que mais respeitam os direitos LGBT, mas a intolerância não desapareceu. A orientação sexual de Carmo nunca foi aceite pela família e ela entrou numa espiral de exclusão que incluiu dormir na rua. Esta terça-feira é Dia Internacional Contra a Homofobia

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Paulo Pimenta
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Maria do Carmo Sousa: "Achava que não tinha direito de amar outra mulher" Paulo Pimenta

Chegou a viver na rua 10 dias. “Foi muito mau. Há pessoas que vêem uma mulher na rua e têm aquela mania de dizer: uma mulher arranja dinheiro fácil. A mim aconteceu-me. Estava cheia de fome, pedia dinheiro, as pessoas não davam, diziam-me que tinha bom corpo, que podia ir para a prostituição.”

Sentia-se responsável pela companheira. “É muito bonita e estava muito fragilizada. Muitos homens olhavam para ela. Se algum se aproximava, eu punha-me à defesa, tinha uma reacção brusca. Onde ia buscar força? À minha fé. À minha fé e ao meu amor. Pedia a Nossa Senhora de Fátima que nos protegesse. ”

Portugal está entre os países que mais respeitam os direitos de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais, de acordo com o ranking anual da ILGA-Europa divulgado no princípio do mês. Portugueses e espanhóis (67%) são os que menos se preocupam com a orientação sexual da vizinhança, indica um novo estudo feito em 65 países, que será divulgado por essa organização esta terça-feira, Dia Internacional Contra a Homofobia e a Transfobia. Todavia, ao que se lê num relatório publicado pelo Eurobarómetro em Outubro, pouco mais de um terço continua a achar que há alguma coisa de “errado” numa relação entre pessoas do mesmo sexo (média da União Europeia é 58%).

Maria do Carmo Sousa, agora com 43 anos, cresceu numa terra mais antiga do que a nacionalidade: Oliveira do Douro, uma freguesia rural do concelho de Cinfães, na margem esquerda do rio. “Eu gostava de mulheres e isso era coisa muito mal vista por lá. Fugi para o Porto aos 30 anos.”

Enquanto viveu na aldeia, não conheceu namoro. “Metia-me confusão estar com homens. Tinha amigos, brincava com eles, dançava. Quando percebia que algum gostava de mim, afastava-me. Iam fazer queixinhas às minhas irmãs. Elas vinham chatear-me. ‘Aquele rapaz é bom, não sei quê.’”

Alergia a rapazes

Certo domingo, um rapaz com quem costumava conversar, sentou-se com ela ao sol, começou a falar-lhe em casar e em ter filhos e tentou beijá-la. Carmo adoeceu. “Tinha tanta comichão. Coçava-me toda. Fiquei com o corpo cheio de bolhas. Fui ao hospital. O médico disse que era uma reacção alérgica.”

Sentia-se muito sozinha no seu segredo, mas não se atrevia a abrir caminho até outras mulheres com a mesma orientação sexual. “Achava que não tinha direito de amar outra mulher. Se não tinha conquistado o amor da minha mãe, também não ia conquistar o amor de uma esposa.”

A mãe nem sonhava com a sua orientação sexual, mas nunca gostou dos seus modos arrapazados. Enquanto pôde, tentou moldá-la. “Éramos como cão e gato. Conquistei o amor dela aos 25 anos.” Fora-lhe diagnosticada doença de Alzheimer e Carmo dispusera-se a cuidá-la. “Ela esqueceu-se que eu era filha dela. Conhecia as minhas irmãs, os meus irmãos, a mim não, a mim chamava-me mãe, mas, quando ela me abraçava, eu sentia o amor de mãe. Depois, a doença dela agravou-se e eu comecei a amá-la como se ela fosse minha filha. E isso tudo me ajudou. Ajudou-me a perceber que tinha direito a ser amada, como os meus irmãos…”

Não ficou com a mãe até ao fim. Os irmãos tinham prometido pagar-lhe. “Começaram a fugir. Cismavam que o meu pai tinha de partir a terra. E o meu pai dizia que não ia fazer isso à minha mãe. E eles deixaram de me ajudar financeiramente. E eu estava ali a fazer tudo. Comecei a dizer: ‘Assim não dá!’ E tive muitos problemas com o meu pai. Quando ele descobriu que eu gostava de mulheres, quando eu assumi mesmo, ele não gostou da ideia e começou a fazer muitas asneiras.”

Talvez tivesse permanecido na aldeia até a mãe morrer, se o pai não se tivesse tornado agressivo, se os irmãos continuassem a dar-lhe algum dinheiro, se não tivesse entrado em choque com uma irmã. Sentiu-se expulsa pelo pai. “E já estava decidida a ter uma vida sentimental.”

Por ali abaixo

Decorria 2003. Esteve sete meses a trabalhar como empregada doméstica no Porto. “Primeiro trabalhei em casa de uma senhora. Depois trabalhei em casa da mãe dela. Dormia lá no fim-de-semana, ela queria que eu dormisse todos os dias. Ela queria ter uma empregada interna, mas eu queria ter um trabalho, uma casa, uma vida amorosa, não? Saí. Fui para o Algarve viver com a minha namorada.”

Conhecera duas mulheres através de um anúncio. A partir dessas, outras. Por telefone, conversara muito com uma oriunda de São João da Madeira, então a trabalhar no Algarve, e apaixonara-se. “A forma como nos juntámos, o facto de sermos desprezadas por tanta gente, tudo isso uniu-nos mais, fortaleceu o nosso amor.”

Pouco estiveram no Algarve. A namorada num instante ficou sem trabalho. De volta ao Porto, não conseguiram mais do que biscates. A família da namorada não aprovou a relação com Carmo. Só uma tia se dispôs a ajudá-las a pagar a renda. Deixou de fazê-lo mal lhe disseram que a sobrinha gastava dinheiro em bebida. “O dinheiro que eu tinha ganho desse mês não dava para pagar o quarto – faltavam 15 euros. Fomos para uma pensão. Quando o dinheiro acabou, ficamos na rua.”

Foram dez dias de desespero. Tinha saído de casa há pouco mais de um ano para ter uma vida completa, encontrara a pessoa com quem queria passar o resto da vida e estava a dormir na rua. Primeiro, arrumaram-se junto a uma caixa multibanco. Depois, encontram um vão de escada de uma loja desactivada. “Eu levava papelões. Punha os papelões à frente. Era o abraço. Era o aconchego. Mais intimidade não havia.

Iam comer à Porta Amiga da AMI no Porto, que intermediou o contacto com a tia e accionou a Segurança Social. “No princípio, nem o Rendimento Social de Inserção a gente tinha. Para isso era preciso morada e a gente não tinha morada. Ajudavam-nos a pagar o quarto. E nós íamos tirando cursos – contabilidade 50 horas, computador 50 horas e assim – para ter algum dinheiro.”

Os cursos não serviam apenas para ajudar a “ir pagando coisas”. Carmo saíra da aldeia com o 4.º ano de escolaridade e a auto-estima num farrapo. Em 2012, nove anos e sabe lá ela quantos cursos depois, tinha equivalência ao 12.º ano. “Aprendi muitas coisas úteis. Nos cursos, aprende-se sempre coisas úteis”, diz.  

Era de uma timidez capaz de a emudecer. Perdeu o medo de falar em público. Ganhou vocabulário, desenvoltura.  Recuperou ritmo de trabalho, sentido de responsabilidade. Não se cansa de agradecer à técnica da Segurança Social, Olga Rocha, e à psicóloga da Cais, Cláudia Fernandes. “Estou bem agora, graças a Deus.”

Começou por cumprir um Contrato Emprego Inserção+, um programa do Instituto do Emprego e Formação Profissional reservado a desempregados que beneficiam de rendimento social de inserção: esteve um ano a trabalhar num projecto da CAIS destinado a reduzir o desperdício e a transformar vidas.

Já estava inscrita na Plataforma+ Emprego, vertente do Núcleo de Planeamento e Intervenção em Sem Abrigo do Porto, que procura ligar empregadores e cidadãos com experiência de vida de rua. A todos pareceu que estava apta para entrar no mercado de trabalho não subsidiado. Olga Rocha disse-lhe que “não podia parar, perder ritmo”. Enquanto nada surgia, Carmo manteve-se na Cais, a título de voluntariado, e frequentou um curso de vendas de curta duração.

Tremia quando foi à entrevista na Associação dos Albergue Nocturnos do Porto. Foi uma das primeiras pessoas a serem colocadas pela Plataforma+ Emprego, a braços com uma população com baixa empregabilidade – desde que foi criada, em 2013, colocou 13 pessoas em mercado formal de emprego e 8 em mercado social de emprego e está a trabalhar competências de outras 25 a 30.

“Pensava que não ia ficar”, diz. “Eles têm espírito de ajudar pessoas em dificuldades.” Faz limpeza geral. Já não está à experiência. Já tem contrato sem termo. “Se me portar bem, vou ficar toda a vida a trabalhar. Já consigo pagar a renda, a água, a luz. Para a comida ainda precisamos de apoio.”

Direito à felicidade

Ainda vai buscar as refeições à Casa da Rua, da Santa Casa da Misericórdia do Porto. E ainda frequenta a Cais, onde a psicóloga Cláudia Fernandes continua a ajudá-la a encontrar formas positivas de encarar a vida. “Enquanto não assumi que gostava de mulheres, era uma pessoa muito infeliz. Não me sentia bem comigo. Quando assumi, tornei-me mais alegre, mais divertida, com mais auto-estima. Já não preciso de esconder nada. Quem quer, quer. Quem não quer, não quer.”

Uma vez, numa entrevista de emprego, perguntaram-lhe pela orientação sexual. “Gosto de mulheres, porquê? Então já está excluída”, reproduz. “O país mudou, mas ainda há gente que não aceita”. Não é por isso que Carmo se vai esconder. “Se assumi foi para ser feliz, não foi para os outros.”

A mãe morreu sem saber. O pai nunca consentiu. “Ele dizia que nunca me tinha perdoado ter deixado a minha mãe para estar com uma mulher. Fez tudo para eu deixar a minha mãe, mas nunca me perdoou. Talvez ele quisesse que eu fosse diferente. Ele dizia que pensava que eu nunca ia abandoná-los, que eu ia fazer tudo por eles. Fiquei até um dia. Também tinha direito à felicidade.”

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