Isto é produção cultural massiva de Lisboa
Investigador em Estudos Urbanos, António Brito Guterres circula por vários bairros da periferia da Grande Lisboa há anos. A música pode ser uma forma de ler a cidade e esta produção, diz, mostra capacidade de auto-organização, congregação e resistência.
António Brito Guterres, 37 anos, investigador em estudos urbanos no DINAMIA do ISCTE - IUL (Centro de Estudos sobre a Mudança socio-económica e o Território), geriu e coordenou projectos sociais em diversas zonas da Grande Lisboa. No ano passado, apresentou uma TEDx Talk em que comparou o número de visualizações no YouTube de alguns músicos dos subúrbios com as de artistas do circuito “oficial”, mostrando a cidade que escapa às políticas públicas, aos agentes, aos media. Foi ele quem nos levou até Loreta, em Mira Sintra, Primero G, na Arrentela, Juana na Rap, em Monte da Caparica, Nininho Vaz Maia, no bairro da extinta Curraleira, Mynda Guevara, na Cova da Moura, Deejay Telio e Deedz, no Vale da Amoreira.
Como podemos ler o que se está a passar na Grande Lisboa através da música?
Existe uma dissociação entre as representações destes territórios – representações que determinam como se gere e como se governa, que determinam as políticas públicas – e aquilo que realmente são. A música e as formas contemporâneas e orgânicas que as pessoas têm de consumir e produzir cultura nestes territórios permitem-nos ler o próprio território. Lisboa tem uma grande divisão. Raramente pensamos na escala de uma cidade de fluxos, de gente a mexer-se, e são três milhões de pessoas. Normalmente, temos a noção de uma escala curta em que toda a gente se conhece. Isso tem a ver com a forma como a cidade foi construída ao longo dos tempos, por vagas de migrações. Só mais tarde, quando se começa a pensar em políticas e realojamentos – e isso coincide com a transição do sector secundário para o terciário –, é que surge a classificação dos bairros como desafiantes, preocupantes, habitados por pessoas desempregadas, com Rendimento Social de Inserção, imigrantes, e com todo o tipo de carimbos.
A música que se expressa neste território, contemporânea da Grande Lisboa, e territorializada, tem a ver com o espaço paroquial que as pessoas criam entre elas, e por isso o que está na reportagem é muito territorializado – não fomos a um bairro do centro de Lisboa, o espaço de produção não é um apartamento alugado.
O que quer dizer com territorializado?
A linguagem que surge dessas músicas, e o que expressam taxativamente, tem muito a ver com o território e com esta construção de Lisboa em que as pessoas ficam enroladas em sítios, quer sejam os que vêm para a cidade e constroem barracas à sua medida, quer seja fruto da contingência da política que diz ‘vais morar para aqui ou para ali’. E a música aí tem um papel diferenciado: funciona como defesa cultural e ancestral. Há muitas formas de produção musical que têm a ver com essa necessidade (as batucadeiras, grupos de funaná...) de manter viva a tradição cultural. Mas também funciona muitas vezes como catarse e expressão do dia-a-dia, das dificuldades e das coisas boas, da contingência que faz com que esses bairros existam, de se estar ali segmentado, segregado. No rap isso é mais notório – em ultima análise, se não conseguir tocar instrumentos, consigo sempre cantar. Todas as pessoas desta reportagem têm essa história no princípio de não terem uma estrutura de produção. Depois há a capacidade que têm de colarem novos mundos. Um sítio em que há portugueses de vários sítios, pessoal cabo-verdiano, pessoal de outros países – um melting pot, porque é um sítio que está isolado, barrado, cadastrado e fronteirado –, cria, por dentro, estas necessidades de expressar certas contradições e de procurar pontos de encontro.
Qual é o impacto destes artistas?
É interessante ver o impacto enorme que estes intérpretes têm – tendo em conta que estão no YouTube de forma independente, e sem os meios de produção – quando comparados com artistas do contexto nacional que são promovidos, têm agenciamento, vão a rádios, à televisão… Começa-se a reflectir: isto tem uma grande força em Lisboa, um grande power. O rap, os kuduristas e o afro house são uma mistura, muitas vezes só possível em Lisboa, de uma série de culturas que esta cidade tem, já com meios de produção do mainstream, com influência dos Estados Unidos. Se repararmos, o Loreta tem milhões de views e faz um rap cantado em crioulo; o Deejay Telio tem uma música, Que safoda, com milhões de visualizações – já não é a catarse do rap mas outra coisa. Ele usa os meios de produção de uma sociedade informatizada, o computador, os samples, mas depois tem o slang de várias convivialidades de Lisboa, várias tonalidades que podem ser kuduro, tarrachinha ou reggae. Ou o caso do Nininho, que vem de um contexto cigano, canta à cigano, mas cuja música também vem do que o cerca: mistura kizomba e pop portuguesa com o lado cigano.
É engraçado isto existir: evidencia a potência, a capacidade de auto-organização, o facto de as redes sociais permitirem criar circuitos no donut, na periferia. É bom o pessoal perceber que se pode auto-organizar, que consegue dar a cara. Por outro lado, permite-nos ler a cidade a partir do potencial que isto tem, da capacidade de congregação, de encontro, de resistência e resiliência. Tudo isto é feito autonomamente, sem acesso a meios de produção da parte das escolas e das políticas de educação sociais e culturais, sem espaços de legitimação próprios qualificados.
Isso também depende de quem define o quê: muitos destes músicos são blockbusters mas não são visíveis para toda a gente porque não estão num circuito que legitima…
Mas o aglutinar de comunidades já é tanto que dá esta escala. Dá que pensar. Se formos falar destas produções artísticas com o departamento de cultura do poder autárquico ou a nível nacional, elas são vistas como trabalho social. Posso ter numa esquina da Grande Lisboa a associação cultural, um grupo de cante alentejano, um conservatório de dança, um grupo de vira do Minho, outro da cultura saloia e isto conta como política de cultura para o município e a nível nacional, tem uma visibilidade política e faz parte do pensamento cultural desse município. Mas uma produtora de kuduro, um espaço de dança de hip-hop, um estúdio de rap são considerados trabalho social.
Aparece [mais música] porque não há outras oportunidades. Não podemos olhar para isto e pensar: ‘o pessoal do bairro vai ser músico’. O acesso à cultura é importante para criar ferramentas e linguagens que ajudem uma pessoa a ser um bom amigo, um bom mecânico, etc. – isso é universal. Mas estas pessoas não têm as mesmas oportunidades que os outros. Onde estão os artistas plásticos? Os produtores de teatro? Os escritores, os realizadores? Não há.
A verdade é que a maneira como as pessoas fazem cultura nestes sítios é muito orgânica: não fazem workshops, auto-organizam-se, fazem o estúdio no seu quarto e isso permite haver esta novidade: isto é produção cultural criativa, massiva, da cidade de Lisboa.
As alternativas dependem dos meios de produção…
… e das políticas. Através das músicas conseguimos perceber claramente que o principal contacto que têm com o Estado é com a polícia. Pensar-se-ia que o lugar natural e transversal a tudo seria a escola. Mas a realidade está tão bem segmentada que muitos professores não compreendem os alunos. Ou então são os currículos que fazem parte da mesma esquizofrenia: vamos falar como se o mundo fosse A, mas afinal é B. Nas narrativas todas da cidade, e há imensas, há uma que é hegemónica e abafa as outras.
Estes músicos fazem música para as suas comunidades, que são enormes, mas têm um lado cosmopolita, vão actuar em outros países.
Isto não é música underground. Claro que há aspectos deste tipo de música que são underground. Olhando para a cidade construída por baixo e para a diversidade de pessoas que nela existem, o Loreta é um artista popular de Lisboa, o Deejay Telio também, e saem do cosmos e vão a sítios cosmopolitas. O Nininho faz parte destas novas estruturas da cidade: é cigano mas não é, o lado de fora diz que ele é cigano, o lado de dentro diz que ele não canta à cigano, mas também não nega que ele é cigano.
A possibilidade de esta cidade invisível ser legitimada pela cidade vigente não deixa de confirmar uma relação de poder de uma sobre a outra.
Mas a questão é essa, a cidade deve ser construída na base com as pessoas todas. Por outro lado, não quero alocar uma excentricidade absoluta: uma cidade feita de imigrantes tem necessariamente formas de estar e de produzir tão diferentes que é difícil de apanhar tudo – e nem é isso que se deseja, é impossível, vai-se sempre deixar alguém de fora. Vamos classificar e dizer ‘a cidade invisível é que é’, 'isto é que é a cidade'? Não. O que se trata aqui é de olhar para a escala que estas coisas têm e usá-las para ajudar a ler o território, pensando como reproduzem uma série de políticas e hegemonias económicas.