No FIMFA, celebra-se a vida no meio do circo e da guerra
Esta quinta-feira, o festival regressa a Lisboa e põe marionetas a falar do estado do mundo com humor e exuberância. O arranque faz-se com os franceses do Théâtre La Licorne, no Maria Matos, aos comandos de um circo dado a utopias.
Pode um circo montado por personagens cujo aspecto centenário seria mais condizente com uma pacata vida de lar fazer-se quase da mesma matéria que histórias de guerra e de sobrevivência em situações extremas? No FIMFA – Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas de Lisboa, sim, nada disto está assim tão distante. Na sua 16.ª edição, a decorrer entre 5 e 22 de Maio em várias salas lisboetas, os acrobatas seniores do francês Théâtre La Licorne partilham com o palestiniano Husam Abed, a iraniana Yase Tamam e a israelita Yael Rasooly relatos de superação das suas condições (físicas, geográficas, de conflito) e agarram-se à fantasia e à capacidade de sonhar com uma existência tão perfeita quanto possível dadas as circunstâncias (a velhice e a perda de capacidades motoras para uns, a iminência constante da morte para outros).
“São todos momentos de transcendência”, compara o programador Luís Vieira, da companhia A Tarumba, estrutura responsável pelo FIMFA. “É este plano de instabilidade e de capacidade de dar a volta por cima que os mantém acordados e despertos para as coisas, celebrando a vida de uma forma entusiástica, com alguma exuberância.” E é esse pulsar de vitalidade que tanto Luís como Rute Ribeiro (a outra metade impulsionadora do festival) descobrem nos espectáculos que seleccionaram para o FIMFA 2016.
Isto porque assumindo que não querem que a sua programação se alheie do que acontece no mundo, e tendo naturalmente percebido que a programação deste ano se encaminhou para reflectir “uma época em que as liberdades que pensávamos estarem conquistadas” se vêem sob ameaça, conforme descreve Rute, interessa-lhes sobretudo que o festival não decorra com um pano de fundo muito negro. “Mesmo nestas situações de guerra, trata-se de ultrapassar, de soldados que param de fazer a guerra porque preferem fazer esculturas em barro [Count to One], ou de raparigas que preferem fazer de conta que não se passa nada e continuam a tocar piano, a falar francês e ir às aulas de ballet [The House by the Lake]”, explica Luís.
Count to One, The House by the Lake e The Smooth Life formam um conjunto de três espectáculos que se cruzam no Teatro São Luiz (respectivamente: 19 e 20; 20 e 21; 17 a 21), provenientes de três países em conflito (Israel, Palestina, Irão) e que, seguindo abordagens e olhares diferentes, reflectem sobre uma mesma temática. A forma surpreendente como marionetas e objectos se podem tornar aqui protagonistas de uma história, sublinham os directores do FIMFA, pode estar nos mais de 100 quilos de barro trazidos na bagagem pela companhia iraniana ou no arroz que Husam Abed, nascido e criado no campo de refugiados de Baqaa (Jordânia), usa como metáfora para os acontecimentos de que é feita a sua vida, contados ao público enquanto confecciona uma refeição tradicional palestiniana que partilhará no final.
Cada uma destas escolhas faz parte da vontade dos programadores de mostrar questões prementes da actualidade no teatro de marionetas, contrariando a ideia persistente (mas errada) de que este é um mundo feito apenas à medida do inocente e crédulo olhar infantil. Se isso pode ser razoavelmente verdadeiro pensando nas propostas para toda a família apresentadas pelo Teatro de Marionetas do Porto (a história de Barba Azul, Teatro Taborda, 7 e 8), pelos holandeses Lichtbende (Tutu, uma narrativa conduzida pelo uso de lanternas mágicas japonesas, 11 a 15, São Luiz) ou pelo britânico Tim Spooner (The Assembly of Animals, uma brincadeira “com demonstrações científicas em que no interior dos animais que ele tem consigo estão sempre a aparecer coisas que se movem sozinhas”, 14 e 15, Teatro Maria Matos), há, por outro lado, os casos da coreógrafa Maguy Marin, da obra de Shakespeare resumida a 50 minutos por David Espinosa. E, sobretudo, dos Pickled Image, cujo Coulrophobia (17 e 18, São Luiz) coloca em cena dois palhaços muito pouco tradicionais que vivem num mundo de cartão. “É um espectáculo completamente insólito”, classifica Rute Ribeiro, “e costuma acabar com as pessoas a gritarem": "Mas de felicidade!”
Nem artroses nem tremedeira
O espectáculo de abertura do FIMFA, no palco do Teatro Maria Matos entre quinta-feira e sábado, chama-se Les Encombrants Font Leur Cirque e realiza um desejo antigo de Luís e Rute: trazer ao festival uma obra de fôlego do Théâtre La Licorne. Entre a ópera Spartacus e a homenagem ao universo circense, a escolha pendeu para a segunda, uma criação em que os programadores vislumbram “uma homenagem quase subreptícia a Fellini através do circo”. A maior homenagem, no entanto, explica a directora artística da companhia ao PÚBLICO, tem o circo tradicional francês como destinatário. “Costumamos fazer adaptações de romances e de grandes clássicos”, contextualiza Claire Dancoisne. Daí que alguns fazedores de circo tenham assistido a Les Encombrants… com a língua afiada e preparados para expelir fel, convencidos que estavam de que seriam ridicularizados pelo La Licorne. Nada de mais errado, garante Dancoisne.
“O fio condutor”, diz ainda a encenadora, “é dado por estas personagens idosas que partiram pelo mundo e que buscam alcançar o impossível”. O impossível aqui, num circo sem “os jovens atléticos do costume, mas com velhinhos, ainda assim, um pouco acrobáticos à sua maneira”, passa em parte pela espectacularidade das criaturas construídas em ferro, mecanizadas e automatizadas que compõem este mundo em que nem artroses nem a tremedeira imposta pela idade os impedem de façanhas como domar tubarões, rinocerontes ou latas de sardinhas. Carregada de humor, Les Encombrants… pode remeter para os inventos de Leonardo da Vinci ou para as viagens extraordinárias de Júlio Verne, mas serve-se da fantasia, em primeiro lugar, para reclamar uma realidade que lhe acompanhe o passo. Uma realidade em que a velhice possa não ser vista como inútil e em fuga da vida, mas antes como um reduto qualquer de utopia e de sonho.