Fados de um só letrista

Tal como acontece com Helder Moutinho, também Aldina Duarte e Carlos do Carmo depositaram álbuns inteiros nas mãos de um único poeta.

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Pauliana Valente Pimentel

João Monge, autor da totalidade dos textos de O Manual do Coração, não é novato nesta missão. Monge, que começou por escrever para os Trovante e se aventurou nesse plano maior de contar uma história dividida às postas por canções com o colectivo Rio Grande, aproximou-se do fado ao escrever para Camané e Mísia. Mas seria Aldina Duarte a desafiá-lo pela primeira vez a tomar conta de toda a produção poética para o seu álbum Crua, em 2006. Tudo porque no final do concerto de apresentação do seu disco de estreia, Monge dirigiu-se ao camarim da fadista para lhe dar os parabéns. Aldina, ainda na euforia do momento, respondeu-lhe que se gostava realmente da sua música devia prová-lo e escrever-lhe um disco inteiro só para ela.

Assim foi. Quando chegou a altura de pensar no segundo álbum, voltou a este momento de desafio espontâneo e delegou no letrista a tarefa de escrever para uma dúzia de fados tradicionais, propondo um novo olhar sobre a história que contara e cantara no seu álbum de estreia, Apenas o Amor. Essencial, diria então em entrevistas, seria a coincidência de visões políticas entre os dois, algo que transparecia em Crua: os seus corações, não apenas por razões da Natureza, batiam ambos à esquerda.

Aldina Duarte, naturalmente atraída pela ideia de construir álbuns que respeitem a um conceito e não se limitem a empilhar fados avulsos, voltaria a entregar os textos de um dos seus álbuns a uma única letrista no último Romance(s), editado em 2015. Numa altura em que pensava até fazer uma pausa discográfica, seria a poetisa e editora Maria do Rosário Pedreira a propor-se escrever um romance em forma de fados, uma só história de um clássico triângulo amoroso, contada com princípio, meio e fim, num dos mais ambiciosos e espantosos discos da recente discografia do fado. Romance(s) funcionaria, no fundo, como um aprofundamento da amizade entre as duas, ditada em grande parte pelas afinidades literárias, mas também do ponto de partida que a literatura providenciara em Contos de Fados, disco anterior de Aldina.

Carlos do Carmo e Ary dos Santos

Maria do Rosário Pedreira, uma das mais solicitadas letristas do fado da actualidade, estreou-se a escrever neste domínio ao participar com os poemas Pontas Soltas e Vem, Não te Atrases no álbum À Noite (2007), de Carlos do Carmo, disco composto por fados tradicionais aos quais o fadista aplicava textos contemporâneos. Carlos do Carmo é, na verdade, a grande referência nestes encontros exclusivos entre intérpretes de fado e poetas, tendo gravado dois álbuns históricos com José Carlos Ary dos Santos: Um Homem na Cidade (1977) e Um Homem no País (1984) – ficou por concretizar Um Homem no Mundo.

A revolução de Um Homem na Cidade seria dada também pelas inesperadas autorias de José Luís Tinoco, Fernando Tordo, Paulo de Carvalho ou Victorino d’Almeida, mas seria o olhar arrebatado e singular de Ary dos Santos sobre Lisboa a oferecer ao fadista uma das fatias mais populares do seu reportório. O conjunto dos poemas pode ser entendido não só como uma bela homenagem à cidade povoada por cacilheiros e eléctricos, mas também como um retrato lírico de uma Lisboa ao amanhecer, uma Lisboa com inevitáveis traços antigos e populares, a despertar dos anos de ditadura e a redescobrir-se como cidade livre.

Embora não tenha constituído uma referência musical directa para a construção de O Manual do Coração, Helder Moutinho pensou em Um Homem na Cidade como exemplo de álbum que transporta consigo uma qualidade cinematográfica nos poemas e no título. Mas mais importante do que isso, em cada um destes casos, existe uma estreita colaboração entre poeta e fadista que permite que um álbum seja, em cada momento, pensado como um todo, devidamente encadeado e montado de acordo com um sentido comum. Para que funcione, é depois necessário talento dos dois lados, cumplicidade, sintonia no tom certo a alcançar e uma mão-cheia de composições à altura. Ao conseguir-se tudo isto, como acontece nestes exemplos, é difícil não pensar que estamos diante de um clássico instantâneo.

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