O ideal? O ideal é que a mulher com filhos não trabalhe a tempo inteiro
"Houve uma grande mudança social nas últimas décadas em Portugal, mas houve uma parte de nós que ficou um bocadinho congelada", diz Maria João Valente Rosa. Hoje nasceu o projecto Nascer em Portugal.
Quase 70% dos homens e mais de 60% das mulheres acham que um homem com filhos deve trabalhar a tempo inteiro, fora de casa. Já a “situação laboral ideal para a mãe” é descrita de forma bem diferente: para mais de metade das portuguesas e para dois quintos dos portugueses, trabalhar a tempo parcial, apenas, é o que mais convém a uma mãe. E entre 17% e 25% acham que o melhor, mesmo, seria que ela não trabalhasse de todo.
Dados como estes constam de um projecto multimédia com gráficos, vídeos e textos apresentado nesta segunda-feira, na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa. Chama-se Nascer em Portugal, a nova plataforma digital da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS).
O projecto resulta de uma parceria com a TVI24 e parte de estatísticas oficiais e do mais recente estudo da fundação sobre natalidade, Determinantes da Fecundidade em Portugal, coordenado por Maria Filomena Mendes e também hoje tornado público. Mostra o que pensam mulheres e homens sobre este tema. E como o vivem.
Num país onde a idade média das mulheres que vêem nascer o seu primeiro filho atingiu os 30 anos e que em cerca de cinco décadas viu o número de nascimentos cair para menos de metade, não há “uma ‘guerra de sexos’, ao contrário do que se poderia suspeitar”, sobre isto do que é “o ideal” em termos profissionais quando se é mãe e pai. É que tanto homens como mulheres “defendem o status quo dos papéis tradicionalmente atribuídos” a uns e a outras, aprendemos neste Nascer em Portugal.
“Quando falamos em políticas de natalidade, devíamos pensar na melhor forma de começarmos a responder a certo tipo de desafios que têm a ver com as nossas mentalidades. Porque houve uma grande mudança social nas últimas décadas em Portugal, mas houve uma parte de nós que ficou um bocadinho congelada — e que tem a ver com os nossos valores, as nossas grandes representações”, disse ao PÚBLICO nesta segunda-feira Maria João Valente Rosa, coordenadora científica da FFMS para a população. Faz questão, contudo, de sublinhar que esta sua análise é feita como demógrafa, e não como coordenadora na FFMS. Até porque não quer substitui-se à série de debates agendados para este mês de Maio — que a fundação dedica ao tema da população.
Os debates, um por semana, promovidos pela FFMS acontecerão na Nova Medical School (Faculdade de Ciências Médicas), em Lisboa. O primeiro (“Os filhos são uma boa política?” — é a interrogação de partida) acontece já nesta sexta-feira e reúne vários deputados (Nilza Sena, Sónia Fertuzinhos, Filipe Lobo D’Ávila, José Soeiro e Rita Rato) que vão discutir qual o papel das políticas públicas e dos partidos políticos “quando estão em causa decisões íntimas, como a decisão de ter filhos”.
“Falamos sempre muito da natalidade como alvo de políticas públicas mas é preciso não esquecer que muito se passa dentro de casa e dentro da esfera doméstica”, diz Valente Rosa. “Olhando para os resultados do estudo que agora apresentamos, o Determinantes da Fecundidade em Portugal, percebemos coisas muito interessantes: que a partilha de responsabilidades entre mãe e pai é muito diferente, em desfavor das mulheres; que a transição para o segundo filho é muito determinada pela maior presença do pai quando os filhos são pequenos; que as mulheres e homens de Portugal aceitam que a opção ideal para se ser pai é trabalhar a tempo inteiro fora de casa (ou, quando muito, a tempo parcial), mas que a opção ideal para se ser mãe é trabalhar a tempo parcial ou não trabalhar. Ora, as mulheres investiram muito nos seus estudos e têm um projecto social importante.” Portanto, há aqui um conflito.
“A natalidade não é uma questão de medidas”, prossegue a demógrafa. “É uma questão de políticas, que vão muito para além das medidas. Aumentar isto ou reduzir aquilo não sei que impacto tem, se a sociedade como um todo não se repensar.” É preciso olhar “para os exemplos de outros países, nomeadamente no Norte da Europa, que começaram a viver quebras na natalidade muito antes de Portugal” e que têm conseguido melhorar os indicadores actuando em áreas aparentemente mais laterais, como a igualdade de género. “Quando me dizem que há uma medida que faz a diferença, uma medida milagrosa, não sei... Não vejo por que é que continuamos a insistir no pequenino quando a discussão se deve fazer ao nível do grande, das políticas transversais...”
O primeiro debate do mês, organizado pela fundação, acontece um dia depois de o CDS-PP levar a debate, no Parlamento, um pacote legislativo que inclui a criação de uma licença pré-natal, duas semanas antes do nascimento, e a possibilidade do alargamento da licença parental aos avós.