Objectos misteriosos ao meio-dia

Muitos são os “esplendores” deste “cemitério” para o espectador que nele se aventure.

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Depois de Mekong Hotel, filme de menor fôlego que era um acerto de contas, da parte de Apichatpong, com um “fantasma” pessoal (a retoma de um filme que principiou nos anos 2000 mas cuja produção abortou), Cemitério do Esplendor é a verdadeira sequência de O Tio Boonmee que Se Lembra das Suas Vidas Anteriores, o filme de 2010 que consagrou Apichatpong e que o introduziu no circuito comercial português. Sendo diferente desse filme, não deixa de conter ecos dele e de outros do autor, como Sindromas e um Século (o final, com um número de dança fitness num jardim público, é quase auto-citação). Mas é ainda uma questão de “vidas anteriores”, e de “objectos misteriosos ao meio-dia” (titulo da primeira longa de Apichatpong), como naquele plano de céu, sol e nuvens em que o enquadramento é invadido pelo que parece uma enorme amiba – num filme cheio de “bestiário”, de cães a dinossauros petrificados, passando por uma galinha que só tem par na que Oliveira fazia entrar em Belle Toujours. É fácil perdermo-nos em pormenores deste tipo a propósito de Cemitério do Esplendor, filme riquíssimo em detalhes, mais sublinhados ou discretos, visuais, sonoros ou dialogados, numa explosão de pistas que levam o espectador para várias direcções, e que corresponde à idiossincrasia de Apichatpong – onde para lá do semblante de “austeridade” tudo funciona sempre em surpresa, e cada plano guarda uma porta aberta para a entrada do imprevisível e do surpreendente (inclusive do humor, Cemitério do Esplendor é também um filme muito divertido).

Essa comunicação entre elementos díspares está próxima do essencial. Cemitério do Esplendor é mais uma vez um filme sobre um tempo presente onde se acumulam os tempos passados e os tempos míticos, uma grande arqueologia da realidade e do imaginário fundidos um no outro numa união inextricável. Tudo se acumula, os tempos existem “por cima” uns dos outros – como a escola-hospital que é o espaço central do filme (e onde dormem os soldados acometidos por uma “tropical malady” que os deixa em estado cataléptico), construída sobre um antigo cemitério de reis, que continuam a sugar a energia dos soldados para as suas próprias batalhas. Ou como aquele passeio pelo bosque que é um palácio “imaginário” e que se conclui com um encontro com uma expressão palpável de uma memória dolorosa recente, o que parece um abrigo anti-bombardeamento, “habitado” por figuras humanas como um presépio, e que a protagonista associa às suas recordações do “bombardeamento do Laos”. Mas nessa sequência, outras figuras-estátua – o par de amantes que tem o espelho de um par de esqueletos na mesma posição – indicia a associação harmoniosa de contrários (harmoniosa mesmo quando é dramática) que é uma das chaves do cinema de Apichatpong. Ou mesmo quando não é dramática e é só modernamente “mundana” – já falámos do fitness, mas que outro filme associa espíritos do outro mundo a uma longa cena de demonstração publicitária de um creme de beleza (de características olfactivas peculiares)? Muitos são os “esplendores” deste “cemitério”, muitas são as surpresas guardadas para o espectador que nele se aventure.

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