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“Não éramos livres quando gritávamos pela liberdade”

A prémio Nobel da Literatura de 2015 Svetlana Alexievich esteve na Feira Internacional do Livro de Bogotá. Houve quem ficasse mais de uma hora à espera na fila para a ir ouvir. Mas muitos não conseguiram entrar em nenhuma das três conferências programadas.

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Svetlana respondeu às perguntas da escritora colombiana Laura Restrepo. Fez o mesmo na conferência seguinte, numa conversa moderada pela jornalista colombiana Marta Ruíz David Prada
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A presença dela emociona mais, e de uma forma mais profunda e íntima, talvez porque também a Colômbia tenha uma história recente de violência extrema. David Prada

A literatura de Svetlana Alexievich é construída apenas com as vozes das pessoas que entrevista. Nos últimos dias, milhares de leitores foram à Feira Internacional do Livro de Bogotá (FILBO) ouvir a voz de Svetlana. Quando contou a história da mulher do bombeiro de Tchernobil, sentiu-se um estremecimento no auditório José Asunción Silva, um dos maiores da FILBO. Logo a seguir, a multidão que enchia a sala rompeu num aplauso furioso como um grito. “Era uma mulher pequenina, era cozinheira”, contava Svetlana. “Foi a Moscovo para ver o corpo do marido."

As pessoas tinham ficado mais de uma hora à espera na fila para ir ouvir a Nobel da Literatura. Muitas não conseguiram entrar em nenhuma das três conferências programadas. Todos os anos a FILBO traz um Nobel, e é sempre um êxito. Mas com Svetlana, diz quem frequenta a feira há anos, está a ser diferente. A presença dela emociona mais, e de uma forma mais profunda e íntima, talvez porque também a Colômbia tenha uma história recente de violência extrema.

“O marido era bombeiro. Foi chamado para apagar o incêndio que deflagrou após a explosão, e morreu pouco depois. O corpo, cheio de radiação, foi levado para Moscovo, para ser neutralizado, isolado. Os médicos não queriam deixar a mulher ver o corpo do marido. Perguntaram-lhe: ‘Quantos filhos tens?’ Ela respondeu: ‘Tenho só um menino e uma menina’. Mas estava grávida de outro. Os médicos disseram: ‘Podes entrar.’

“As pessoas morrem, com a radiação, de uma forma horrível. Ficam totalmente deformadas. O médico disse: ‘Esta não é a pessoa que tu amas. É um objecto, que tem de ser destruído. A qualquer distância emite radiação, é perigoso.’

“A mulher entrou e viu o marido. Mas os corpos, mesmo fechados nas urnas, ainda emitiam radiação. E a menina que ela depois deu à luz só viveu uns dias. Mas foi quem a salvou. O bebé absorveu toda a radiação, e morreu, mas com isso salvou a mãe. Os médicos queriam ficar com o corpo da recém-nascida, para fazerem experiências, mas a mãe não deixou.”

Svetlana ia relatando casos como este, respondendo às perguntas da escritora colombiana Laura Restrepo. Fez o mesmo na conferência seguinte, numa conversa moderada pela jornalista colombiana Marta Ruíz.

As histórias dos bombeiros de Tchernobil serviram-lhe também para falar do desprezo pela vida humana misturado com patriotismo e ideias de grandiosidade colectiva que se tornara habitual no mundo soviético. E que foi um dos factores que explicam o desastre que aconteceu há 30 anos, no dia 26 de Abril 1986. “Os bombeiros foram chamados para combater o incêndio no reactor. A radiação no local era muito intensa, mortífera. Mas eles foram porque confiaram em quem lhes deu a ordem. Tinham dito às pessoas que a energia atómica era inofensiva, e elas acreditavam totalmente nisso. Esses bombeiros tiveram apenas algumas semanas de vida. (…)."

A todos esses homens que foram para o local para impedir que a catástrofe alastrasse chamavam ‘os liquidadores’. Eram jovens, intelectuais, pessoas que tinham cursos superiores, que falavam de uma forma correcta e culta, tinham ideias progressistas e generosas sobre o mundo. Eu estava a falar com eles e, de repente, entra uma mulher na sala. Vinha trazer os ovos fritos que estivera a cozinhar. E eu reparei que tinha chagas nos braços. Perguntei-lhe a que se deviam e ela explicou que ela e as outras mulheres tinham de lavar à mão as roupas daqueles homens. Faziam-no, explicaram, porque não havia tempo de mandar a roupa para uma lavandaria. Mas ao contactarem com aquela roupa contaminada tornaram-se mulheres inválidas. Nunca mais poderiam dar à luz. Algumas morreram. Porque faziam eles aquilo? Porque tratavam aquelas mulheres como kamikazes(…)."

Mas se não tivessem apagado aquele incêndio nos primeiros dias, a radiação ter-se-ia espalhado. Hoje não se poderia viver na Europa.”

O que se passou em Tchernobil foi um fenómeno novo, completamente desconhecido de todos. “A guerra é uma coisa horrível. Mas há uma cultura da guerra. Sabemos como lidar com ela, como falar dela. Com a radiação nuclear, não. Atirou-nos para o abismo. Era um problema cósmico. As pessoas não podiam beber leite, tocar nas plantas. Tinham medo da terra, dos frutos. Não podiam tomar banho, comer. As pessoas abandonavam sítios lindos, onde aparentemente não havia nada de mal, excepto a radiação invisível. Mas não adiantava fugir, porque o perigo já estava nelas. Numa guerra, podemos sempre vir embora, e recomeçar a vida. Ali não. Como espécie biológica, não estamos preparados para compreender esta nova morte. Tínhamos a sensação de estar perante uma realidade desconhecida, fora de controlo, mas que será a realidade do nosso futuro.”

Sobre o regime comunista: “O socialismo é uma ideia complexa, boa. Nas minhas investigações, li cartas de líderes bolcheviques, homens que depois se tornaram verdugos sanguinários. E eram cartas maravilhosas, que falavam do sonho de construir um paraíso, na transformação da vida para os mais pobres. Tudo isso acabou em opressão, violência e morte. Porquê? (…)"

Hoje, nós, os intelectuais, como eu, e as pessoas que lutaram pela liberdade, sentem-se derrotados. Fomos ingénuos. Putin foi colocado na Presidência, pelo KGB para que a Rússia continue a ser um império. Mas é o que as pessoas querem. Uma pessoa que viveu tanto tempo num regime autoritário não pode ser livre imediatamente. Não éramos livres quando gritávamos pela liberdade.”

Sobre a culpa: “O meu pai morreu agora, há pouco tempo. Tinha perdido a memória. Ele educou-me na ideia do comunismo. E eu perguntava-lhe: ‘Como pudeste?’ Quando jovens, nunca temos compreensão para com os nossos pais. Perguntamos: ‘Como puderam?’ A minha neta talvez um dia me pergunte: “Como puderam?’

“Mas a verdade é que os regimes ditatoriais convertem-nos todos em cúmplices. As pessoas têm medo. Medo de morrer, medo de serem presas, medo que as separem das famílias. Na Perestoika, fomos muito duros com os nossos pais. Hoje, se eu pudesse voltar a falar com o meu pai, já não discutiria com ele. Só lhe diria como o amo. O ódio não nos pode salvar. Só o amor. (…)"

No tempo de Estaline, a minha tia Olga denunciou o irmão, que foi preso e morreu na Sibéria. Fui visitar a tia Olga. ‘Tia, porque denunciaste o teu irmão?’, perguntei-lhe. ‘Era assim o tempo. Estávamos em 1937, os traidores deviam ser fuzilados’, respondeu. Mas quando lhe perguntei se foi um tempo muito infeliz, ela disse, sorrindo: ‘Foi o melhor ano da minha vida. Porque amei e fui amada.’"

O Mal não estava só em Estaline. O Mal também está na tia Olga, uma mulher muito carinhosa e bonita. O Mal está em todo o lado. Apeteceu-me perguntar: ‘Como pudeste, tia Olga?’ Não podemos culpar as pessoas. Essa primeira geração depois da revolução acreditava verdadeiramente no comunismo. Em cada geração posterior, a crença foi diminuindo. Mas aquela geração acreditava, e foi ela que combateu na Segunda Guerra Mundial, nos anos 40. Essas pessoas sacrificaram-se pela pátria, fizeram a guerra de forma convicta e sincera. Se não tivesse havido essa geração, a Rússia não teria ganhado a guerra.”

O PÚBLICO viajou a convite da agência Invest in Bogotá     

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