O livro chegou há dias, como navio fantasma que ninguém esperasse, pintado de fresco, e mais carregado. E nele regressam Artur Braga, que bebeu o sangue de um cão para não enlouquecer de sede após dias à deriva no mar; Zé Pinto, que se sonhou nas profundezas do oceano, horas antes de desaparecer para sempre, nas águas geladas da Gronelândia; e Rosa Bailão, que, reza a lenda, atirou foguetes para celebrar a chegada de um lugre bacalhoeiro onde afinal já não vinha o seu homem. Nele voltamos a reencontrar também os verdes, aprendizes de pescadores impreparados para lidar com o amor e com a morte, e maduros, como Ti Zé Caçoilo, que, longe dos seus amores, a enfrentaram, à morte, sozinhos nos seus botes, dezenas de vezes, e viveram para contá-lo a um médico e escritor que navegou com eles, e com as suas histórias, Nos Mares do Fim do Mundo.
O livro de crónicas escrito por Bernardo Santareno em 1959 tem uma nova edição, aumentada com dois textos e fotografias inéditas, levada ao prelo pela E-primatur, com o apoio do Museu Marítimo de Ílhavo, num ano em que uma exposição, e dois projectos de teatro comunitário, seguem a corrente do labor do dramaturgo em torno da Faina Maior. Essa saga que mobilizou um Estado, e milhares de portugueses, durante a ditadura, mas a que poucos escritores prestaram atenção, transformando Os Mares do Fim do Mundo, e a peça que, a partir desta obra, Santareno haveria de publicar no mesmo ano de 1959, O Lugre, numa dupla de textos excepcional pela coragem com que o dramaturgo se atirou a uma leitura da pesca do bacalhau nada condizente com o rumo traçado pela propaganda Salazarista.
O canône fora já estabelecido em duas obras anteriores: A primeira, Os Grandes Trabalhadores do Mar, data de 1941 e tem como autor Jorge Simões, um jornalista do Diário da Manhã que haveria de se tornar assessor de Henrique Tenreiro, um ministro sem ministério que, como delegado-geral e representante do Estado nos vários grémios corporativos das pescas criados pelo Estado Novo se transformou no homem-forte do sector. O livro, escrito, também ele, a partir de uma viagem com a frota, no navio Gronelândia, persegue o objectivo claro de servir o interesse nacional, e é por isso, desde logo, uma apologia do trabalho de ressurgimento da grande pesca levado a cabo por Salazar, política de Estado muito bem documentada por Álvaro Garrido em O Estado Novo e a Campanha do Bacalhau.
A este Os Grandes Trabalhadores do Mar não lhe falta nada que não devesse estar num trabalho do género. Nem mesmo uma crónica dedicada ao 28 de Maio - aniversário do golpe que pôs fim à Primeira República - vivivo em alto mar, com fervor patriótico, nem uns arroubos poéticos de pacotilha, a celebrar um “Portugal tão lindo e tão mimoso”, do Minho ao Algarve, cujos pescadores, garante Simões, “não têm medo de fantasmas”. “Na óptica reprodutora do salazarismo, de pouco importaria observar e descrever a grande faina se tal esforço não servisse o propósito de alcandorar os pescadores ao estatuto de actores típicos de uma nação revivificada pelo Estado”, nota Garrido no prefácio a este livro, reeditado em 2007 sob o título Heróis do Mar pela Caleidoscópio, numa parceria com o Museu Marítimo de Ílhavo (MMI).
“Lendo as centenas de notícias publicadas pela imprensa portuguesa durante o segundo semestre de 1941 (...), depressa se identificam os móbiles da reportagem solicitada [a Jorge Simões] pelo Grémio da Pesca do Bacalhau: exaltar as vantagens da neutralidade portuguesa num mundo tomado pela guerra; enaltecer a superioridade moral de uma “nação cristã” que, embora guiada pelos ideais da ordem e da autoridade, não se deixara seduzir por cesarismos pagãos; apresentar os pescadores bacalhoeiros como obreiros anónimos da “economia nacional” e do aprovisionamento possível em tempos de guerra económica”, assinala, nesse mesmo texto, o investigador da Universidade de Coimbra.
Este épico regresso de Portugal ao mar tinha de ser mostrado ao mundo - que conhecia algo destas histórias de bacalhoeiros a partir do filme de Victor Flemming, Captain Corageous, que valeu a Spencer Tracy um Óscar, em 1937, pelo papel de Manuel, um pescador português a trabalhar na costa leste dos EUA. Em 1949, o livro de Jorge Simões também deu origem a um filme, Heróis do Mar, produção “cara e ambiciosa”, realizada por Fernando Garcia, mas esta foi mal recebida pela crítica mais exigente, apesar de contar com um bom naipe de actores e o elogio da imprensa do regime, recorda Garrido. Dois anos depois, um outro filme, mudo, e tecnicamente frágil, mas passado em muitas salas dos Estados Unidos, acabaria por desempenhar esse papel de propaganda de uma nação reencontrada com o seu destino marítimo.
O seu realizador, Allan Villiers, oficial da marinha australiana e reconhecido jornalista, com várias obras publicadas sobre temas navais, fora convidado pelo embaixador português em Washington, Nuno Teotónio Pereira, para escrever uma crónica a partir de uma viagem num navio da frota, que realizou em 1950. A Campanha do Argus teve um sucesso tal que o belo veleiro de quatro mastros dos Bensaúde - hoje decrépito, e ancorado em Ílhavo, à espera de fundos para voltar a navegar, sob a bandeira da família Pascoal - se tornou no mais conhecido lugre da frota portuguesa. O livro, precedido pela fama do filme homónimo, teve um sucesso enorme, e edições em várias línguas. “O mundo vai ter conhecimento desta viagem, dos lugres portugueses e dos homens que os dirigem, governam, e enchem de bacalhau. O nosso mundo precisa dessa narrativa e sinto-me feliz por me ter sido confiada a sua execução”, afirmava Villiers num depoimento após a chegada à Lisboa citado por Garrido, autor, também, do texto introdutório da reedição, levada a cabo em parceria pela Cavalo de Ferro e pelo MMI em 2005.
Senhor de uma escrita cuidada e fácil, treinada em várias obras do género, o australiano oferece ao mundo um retrato épico de um país de capitães capazes de dominar elegantes veleiros, conduzindo os pescadores à linha até aos Grandes Bancos da Terra Nova e ao estreito de Davis, entre o Canadá e a Gronelândia, onde dezenas de homens eram enviados para o mar sozinhos, em pequenos botes, os dorys, a partir dos navios. Os portugueses pescavam maioritariamente à linha quando as outras nações tinham já apostado em força nos arrastões, nos quais cada homem deixara de ser o capitão do seu dory para se tornar num mero operário a bordo.
A grande personagem de A Campanha do Argus é o próprio navio, corpo orgânico, feito de aço, mastros, velas, botes e homens, e cujo cérebro é o capitão. Villiers, um oficial da marinha, “escreve” a partir da ponte, num convívio estreito com a voz de comando deste e de outros lugres que se juntavam, para lá do Círculo Polar Ártico, nessa viagem em busca de bacalhau. Admira os pescadores, pela sua coragem e destreza, mas o seu estatuto, presume-se, e a barreira linguística, impedem-no de chegar muito perto destes. Os grandes trabalhadores do mar, para usar o título de Simões, ganham nomes e até rostos - o australiano legou-nos uma das mais belas colecções de fotografias sobre a Faina Maior - mas ainda não será desta que, efectivamente, eles ganham vida própria. Para isso, seria preciso esperar mais oito anos.
Com as suas “longas mãos abertas ao vento”, o psiquiatra António Martinho do Rosário embarcou em 1957, 58, e 59, na frota portuguesa da pesca do bacalhau. Passou boa parte do primeiro ano num “moderno” arrastão, o David Melgueiro, fez uma segunda viagem num navio-motor da pesca à linha, o Senhora do Mar, e participou ainda numa campanha no navio-hospital Gil Eannes. Como médico, tinha ao seu cuidado, directa e indirectamente, a vida de “mil e tantos homens”. Que lhe pagaram a atenção, o profissionalismo, e o afecto lavando-o das memórias da cidade “deixada para trás” e enchendo-lhe blocos de notas com o material para uma nova peça de teatro, O Lugre, e para esse estranho e inclassificável objecto, Nos Mares do Fim do Mundo, em que as suas próprias reflexões pessoais, dúvidas e anseios se cruzam com relatos de acontecimentos observados e outros, de outras viagens, que lhe foram contados pelos seus companheiros de campanha: os pescadores.
Um deles, Manuel Maravalhas, co-protagonista, com outros “verdes”, de uma das crónicas, passada a bordo do Senhora do Mar, em 1958, recorda ainda com detalhe, a outros 58 anos de distância, aquele homem “sempre bem vestido, muitas vezes com o seu lenço de seda”, que estabeleceu, com a companha, uma relação de companheirismo. “Eu sou analfabeto, e ele, que distribuia as cartas ao pessoal, um dia escondeu a minha na brincadeira. Depois veio ter comigo, e leu-me a carta da minha mulher, lembra o antigo pescador de Caxinas, de alcunha o “batatas”, com quem o médico partilhou maços de Marlboro e doces, para “amainar” a dureza dos dias de pesca. “Era um homem fenomenal, muito paciente connosco”, elogia, assumindo que nem sempre era fácil lidar com a rudeza dos pescadores.
Fruto desta cumplicidade, e de um programa dramatúrgico bem presente nas suas obras anteriores, Santareno foi mais fundo que os seus antecessores na observação - e descrição - da vida a bordo. “Os relatos que transparecem nestas crónicas revelam sobretudo um ambiente de hostilidade, de agressividade latente, em que vêm à tona sentimentos subliminares, irrompem brutalmente o ódio, a força, a vingança, o medo na sua “pureza” mais crua. O mar e a morte são dois companheiros persistentes, ambíguos e implacáveis que perseguem como um fado a vida destes pescadores. Diariamente enfrentam o medo, porque o oceano é traiçoeiro. Presos nas suas superstições, nas suas crenças, alimentam o seu imaginário com histórias lendárias que se prolongam na memória”, assinala a investigadora Ana Paula Medeiros, num texto de 2001 intitulado Bernardo Santareno e o destino trágico dos homens da Grande Pesca.
A reedição desta crónica do destino trágico dos pescadores do bacalhau inclui fotografias do escritor a bordo dos navios, e dois inéditos descobertos num dos cadernos de notas escritos por Santareno nessas viagens. Um desses inéditos, Responsabilidade, acrescenta mais uma reflexão do médico sobre o seu papel perante aqueles pescadores, que pretende “servir” e sobre o quanto esta experiência o tornará num homem mais seguro de si. O outro inédito relata uma rebelião, contra o capitão, a bordo do arrastão Santo André - hoje navio-museu em Ílhavo - e Álvaro Garrido acredita que o texto não foi incluído pelo autor na primeira edição para evitar problemas com a censura.
As crónicas, e a peça de teatro que se lhe sucede - condensando, no interior de um navio, e numa vintena de personagens, as mais dramáticas situações narradas em Nos Mares do Fim do Mundo - escapam, ainda assim, a uma inscrição no neorealismo. Como assinala Ana Paula Medeiros, Santareno não põe em causa a condição social dos pescadores - nota, aliás, que estes não têm consciência de classe - mas procura, nas suas experiências, um sopro de dignidade que os eleva, no seu aparente anti-heróismo, à condição de heróis, como acontece quando descreve os remorsos que ainda atormentam um pescador, Artur Braga, que anos antes, enquanto náufrago do navio João Costa, se vira obrigado a matar um cão que seguia com ele e um pequeno grupo de sobreviventes num bote, para evitar que os companheiros morressem de sede, após dias à deriva. Uma morte inútil, lamentava-se o homem, porque nessa mesma tarde um navio americano haveria de os salvar.
Tomados de vida própria, com medo do mar ou dos seus próprios fantasmas, e obrigados a vencê-los, ou falhando, como acontece com muitos daqueles, mortos ou ensandecidos pelo mar, a quem dedicou esta obra, os pescadores de Santareno escapam ao retrato cuidadosamente pintado pelo regime. E “a importância histórica e Cultural das obras de Bernardo Santareno sobre a pesca do bacalhau reside, precisamente, no facto de O Lugre e Nos Mares do Fim do Mundo terem colocado em sobressalto as visões oficiais do fenómeno, introduzindo na sociedade portuguesa outras maneiras de ver a grande pesca e um simbolismo estético de todo ausente nas narrativas de pretensão documental”, escreve Álvaro Garrido num prefácio - outra das mais valias da nova edição - em que se atem a contextualizar a recepção ao trabalho do escritor.
Segundo o historiador, em 1957, A Promessa - outra peça sobre pescadores, esta passada em terra - é retirada de cena, no Porto, por pressão da Igreja Católica, quando Santareno se encontra embarcado no David Melgueiro. O médico que, em 1958, segue viagem a bordo do Senhora do Mar, tem já por isso, motivos para ser olhado com desconfiança e, se nada nos é dito sobre a crítica a Nos Mares do Fim do Mundo, a recepção à encenação de O Lugre, no Teatro Nacional Dona Maria II não podia ser pior. Jorge Simões, autor do apologético Os Grandes Trabalhadores do Mar, acusa-o, no Diário da Manhã, de “irrealismo”, de cometer “erros de palmatória” e de “compor um retrato quase anti-nacional da frota portuguesa e dos seus homens.
O homem de mão de Tenreiro chegou a entrevistar alguns capitães, para contraditar as “fantasias sórdidas” do escritor. Que só foi compreendido, segundo Garrido, pelo Diário de Lisboa, cuja crítica, uma leitura politicamente desassombrada de O lugre, serve que nem uma luva a essa obra-irmã, Nos Mares do Fim do Mundo. “Sem alindamentos folclóricos, sem concessões à tradição laudatória que tende a transformar a nossa aventura no mar numa galeria de figurões transcendentes, de mão no peito e bordados a ouro falso, Bernardo Santareno não invocou o Infante nem as Caravelas, e deu-nos, contudo, uma verdadeira epopeia do mar”.