Bairro de São João de Deus, no Porto, entra em obras em clima de festa

Todas as casas do bairro na freguesia de Campanhã vão ser reabilitadas e 13 novas habitações serão construídas nos próximos 16 meses, num investimento de quase cinco milhões de euros.

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A minúscula casa de António e Maria Berta Santos cresceu, graças aos anexos que eles construiram Rui Farinha/NFactos
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Numa das paredes, uma criança escreveu as regras da casa de Maria Berta. Rui Farinha/NFactos
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Ernesto Santos, autarca de Campanhã, fotografado por Rui Moreira junto à casa onde viveu Rui Farinha/NFactos
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Os moradores receberam com aplausos o arranque do projecto de reabilitação e construção de novas casas Rui Farinha/NFactos
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O casal António e Maria Berta santos, à porta do número 62, o T1 onde vivem ma Rua 1 Rui Farinha/NFactos

As cicatrizes ainda não sararam. O nome Rui Rio, por estas ruas acima, não abre sorrisos. São João de Deus foi notícia há pouco mais de 13 anos, quando os bulldozers chegaram para começar a fazer cumprir a única promessa do primeiro mandato do antigo autarca do Porto – demolir boa parte do bairro e expulsar o tráfico de droga – mas as casas que ficaram de pé ficaram entregues ao bolor que foi subindo pelas paredes e a gente que lá mora acusa o abandono: Sorrindo, agora, e de alegria escancarada, perante ao início da construção de novas habitações e a reabilitação de um edificado com 75 anos.   

Não houve ainda foguetes, esta sexta-feira, no lançamento da primeira pedra. Mas já há quem pense na festa que terá de acontecer para o ano, se, cumprindo os prazos, as casas do vetusto Bairro de São João de Deus forem entregues, ampliadas e renovadas, aos seus actuais moradores. Entre as 80 famílias que aqui vivem, a ansiedade é tal que só uma quis mudar de bairro durante as obras. Ninguém se mostrou interessado em sair definitivamente dali, e a esmagadora maioria aceita o desconforto de passar oito meses num contentor, ali mesmo, enquanto decorrer a empreitada de reabilitação que vai duplicar a área das moradias e devolver-lhes os jardins que, por falta de espaço, muitos transformaram em anexos precários.

É possível que o contentor para onde vão morar Maria Berta e o marido António Pereira da Silva, ela com 67 e ele com 69 anos, seja mais confortável do que o minúsculo T1 da Rua 1 para onde vieram morar há anos, depois de terem ficado sós, os dois, e deixado o T3 onde António, o Águas, nasceu, na rua 6. Basta que seja mais seco, para que Berta não precise de dormir com um desumidificador, porque eles já perceberam que nunca terão, nesse lar improvisado para as obras, espaço para tudo o que foram espalhando pela casa cujas paredes cresceram para o jardim, em regime de auto-construção. Foi a fórmula que, eles, e quase todos os vizinhos, encontraram para suprir a falta de espaço. 

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Demolir estes anexos, devolver o jardim a cada moradia, para que o bairro possa voltar a ser conhecido pelas áreas verdes que já chegou a ter, é um dos pontos fortes deste programa de obras que tem como arquitecto Nuno Brandão Costa. Este explicou ao PÚBLICO que a plantação de árvores de fruto em cada logradouro faz parte desta empreitada de reabilitação que agregará as construções existentes de modo a transformar o bairro de 144 fogos apertados num conjunto de 84 habitações novas, mais espaçosas, a que se juntam as 13 novas casas térreas, destinadas aos habitantes com maiores dificuldades de mobilidade, que vão começar desde já a ser construídas.

Para além da quase reconstrução das habitações – com intervenções no interior, mas também nas fachadas, caixilharias e coberturas que vão melhorar o seu isolamento térmico – as ruas serão reabilitadas e uma nova artéria vai ser aberta entre a rua 2 e a rua 5, ligando ao eixo de acesso principal, a rua 1. E as árvores existentes vão ser substituídas por magnólias, que passarão a pontuar a paisagem, entre cada uma das casas, assinalou Nuno Brandão Costa. “Vai ficar bonito, vai mesmo”, acredita Manuela Cunha, nascida aqui há 60 anos. Mas Rui Moreira fez questão de avisar as dezenas de moradores que não quiseram perder o simbolismo da cerimónia de lançamento da primeira pedra desta nova vida do São João de Deus que o “sucesso da intervenção vai depender da forma como se viver aqui”.

Sob o estigma da droga
São João de Deus viveu demasiados anos sob o estigma do tráfico de droga. Depois, foi esquecido, mas a cidade ainda olha com estranheza para este lugar onde, dantes, muitos taxistas recusavam ir e os estafetas obrigavam os moradores a sair do complexo, ou, no limite, aguardavam à porta do antigo posto da PSP para entregar uma simples pizza, com medo de roubos e agressões. A má fama era tal que, tal como aconteceu com outras pessoas, uma das filhas de Manuela Cunha mentiu ao patrão sobre a sua morada, para conseguir o emprego que ainda tem. Hoje, o empregador já conhece a sua história, mas longe da cidade, nos arrabaldes de Campanhã, o bairro precisa de algo mais do que a pacatez que por aqui se vislumbra hoje em dia para reconstruir a imagem que os portuenses dele guardam.

As obras talvez ajudem a demolir o estigma. Manuela não se lembra da última vez que houve uma intervenção nas casas. Fala em 40 anos, embora outro morador, Manuel Moutinho, aqui a viver há 67 dos seus 70 anos, se recorde de alguma requalificação “há 15 anos ou mais”. O tempo, na verdade, é um detalhe. O estado das casas, não, e a obra já era urgente há muito. Os 4,8 milhões de euros que aqui vão ser investidos (4,3 milhões só na reabilitação de casas e ruas) são, para o socialista Manuel Pizarro, vereador da Habitação, acima de tudo, uma “prova de respeito pelas pessoas”, que, assinalou, foram todas ouvidas na preparação deste projecto. “As pessoas resistiram muito e querem ver este bairro renovado”, disse, comentando o facto de quase ninguém ter querido sair dali por causa das obras.

Entre os intervenientes na cerimónia, um, mais do que os outros, não escondeu a emoção. Ernesto Santos, socialista, presidente da Junta de Campanhã, nasceu e viveu aqui e, há 13 anos, assistiu “a um atentado”. “Na altura era presidente da Junta o Fernando Amaral, e com ele, e com o Rodrigo Oliveira, que foi vereador do PS muito lutamos, mas não conseguimos impedir as demolições. É por isso com muita alegria que vejo o que está a acontecer, esta nova forma de fazer cidade para as pessoas, não contra as pessoas”, afirmou, antes de agradecer a Rui Moreira a atenção que o executivo tem prestado a Campanhã. O autarca lembrou o projecto do Matadouro, o interface na estação ferroviária, a despoluição do Rio Tinto, que está para avançar. “Esta cidade tem de tomar um novo rumo, e alargar para Oriente o que a zona ocidental já tem de sobra”, pediu, dizendo a seguir que sabe que “o presidente tem outras ideias e outros projectos” para a freguesia.

O independente Rui Moreira aproveitou para responder a quem o acusa de estar obcecado com Campanhã. “Era uma promessa eleitoral das nossas duas candidaturas”, assinalou, virando-se para o socialista Manuel Pizarro, com o qual se coligou. “Não nos acusem de cumprir”, ironizou, antes de tirar um papel do bolso para elencar, bairro a bairro, os  complexos de habitação municipais que estão em obras ou vão ser reabilitados até ao final do próximo ano. “Vamos investir na freguesia 26 milhões de euros. Este é o nosso compromisso com Campanhã para criar condições para que ela volte a ser a força motriz da cidade. Depois deste arranque, isto não pode retroceder”, insistiu, aplaudido pela população, antes de sair rua abaixo.

No fundo da rua 1, à porta da casa 6, Manuela Cunha, 60 anos vividos aqui, digeria tudo aquilo à conversa com duas vizinhas. Tem um T3, há-de passar para uma casa de tipologia mais baixa porque as filhas já não moram com ela, mas preocupa-a que não lhe garantam condições para continuar a albergar um rapaz que salvou, com três meses, de uma família disfuncional, há 23 anos. A adopção nunca foi oficializada, e ela sabe que agora depende da compreensão da empresa municipal Domus Social para que lhe seja reconhecido o direito a um T2. “Nem me importo de pagar mais, porque ele trabalha, mas queria era tê-lo comigo, porque o criamos”, pede, escondendo, com um sorriso, a angústia que diz sentir. As amigas confortam-na, e ela até consegue pensar na festa que quer organizar, quando a reabilitação terminar. “A vizinhança é boa, o bairro nesse aspecto, está como queremos. Só faltam as obras”. 

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