“Surrealismo socialista” na Casa da Música

Em Ano Rússia, o ciclo Música & Revolução é dedicado às obras banidas no tempo do regime soviético, Quatro concertos de 23 de Abril a 1 de Maio.

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As mãos de Chostakovitch fotografadas em 1922 DR

A expressão “surrealismo socialista”, com que o director artístico da Casa da Música subintitulou o programa da edição deste ano do ciclo Música & Revolução, “é obviamente uma provocação e uma subversão dos termos do kitsch proletário do realismo socialista”. António Jorge Pacheco enquadra assim a programação deste festival que vai já na 11.ª edição, e que surge também, naturalmente, tematicamente associado ao calendário do Ano Rússia.

Do mesmo modo que, em 2015, no Ano Alemanha, o mesmo ciclo deu destaque às músicas proibidas pelo regime nazi, agora vão estar em destaque compositores que, a partir de dada altura e em diferentes momentos da história da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), foram banidos da circulação e da agenda cultural do regime comunista.

“Trata-se de dois regimes que, nalguns aspectos e simultaneamente, na segunda metade da década de 1930, coincidiram nas restrições e na perseguição da liberdade criativa e de tudo o que fosse de vanguarda, nomeadamente na música”, nota António Jorge Pacheco.

Num programa que, à última hora, foi encurtado pela impossibilidade de, por razões de saúde, o pianista austríaco Markus Hinterhäuser se apresentar no dia 30 com a integral das sonatas de Galina Ustvolskaya, o Música & Revolução abre este sábado (Sala Suggia, 18h) com a Orquestra Sinfónica do Porto (OSPCM) e o Coro Casa da Música a interpretarem a Cantata para o 20.º Aniversário da Revolução de Outubro, op 74 (1937), de Sergei Prokofieff.

Esta peça “grandiosa e espectacular”, composta sobre textos de Marx, Lenine e Estaline – recorda o director artístico da Casa da Música –, marcou o regresso de Prokofieff à Rússia em meados da década de 30, depois de ter vivido vários anos entre a Europa e os Estados Unidos. Nela, o compositor cantou o heroísmo e os triunfos da Revolução de Outubro, tornando-se, de algum modo, o compositor do regime e modelo do realismo socialista. Um estatuto que haveria de mudar uma década depois, quando Prokofieff decidiu experimentar novas sonoridades e estéticas vanguardistas.

A mesma sorte teve Chostakovitch, de quem a OSPCM interpretará também este sábado o excerto Passacaglia da ópera Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk (1936). Trata-se da obra que fez também com que o seu compositor deixasse de ser considerado um expoente da música conforme aos ditames do realismo socialista e passasse a ser considerado “um burguês de gosto pervertido”, segundo os termos de uma crítica anónima surgida no jornal Pravda, após a sua apresentação no Teatro Bolshoi de Moscovo, numa récita a que assistira o próprio Estaline.

Nikolai Miaskovski, compositor também banido por altura do 1.º Congresso da União dos Compositores (1948), será igualmente ouvido neste primeiro concerto de Música & Revolução, com a peça Silêncio, que será dirigida pelo maestro titular Baldur Brönnimann.

Depois de, no dia 26, a StopEstra apresentar o espectáculo Back in the USSR, com Tim Steiner a dirigir aquela banda surgida no velho Centro Comercial Stop a interpretar temas do pop-rock proibidos na União Soviética, o programa regressa no fim-de-semana de 29 de Abril e 1 de Maio, com novo alinhamento de compositores e obras que caíram em desgraça junto da nomenclatura soviética.

Será o momento de assinalar “um terceiro momento histórico de repressão à música e às suas vanguardas”, nota António Jorge Pacheco, referindo-se ao ano de 1979, quando, desta vez já sob a direcção de Leonid Brejnev como secretário-geral do PCUS, aconteceu o episódio d’Os sete de Khrennikov. Trata-se do grupo de compositores que foram denunciados no decorrer do 6.º Congresso da União dos Compositores pelo seu presidente, Tikhon Khrennikov, de criarem música que mais parecia “lama barulhenta”, e que por essa razão ficaram impedidos de representar oficialmente a URSS.

Entre estes compositores estavam os nomes de Elena Firsova, Edison Denisov e Sofia Gubaidulina (que este ano fará 85 anos), de quem a OSPCM e o Remix Ensemble interpretarão várias peças nos dois concertos citados. No alinhamento de ambos voltará a estar em destaque Chostakovitch, cuja Sinfonia nº 3 fechará o concerto do 1.º de Maio.

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