Abate de animais de companhia, uma “realidade assustadora” e “fora de controlo”
Fim do abate a nível nacional nos centros de recolha de animais começa a ser discutido nesta terça-feira na Assembleia da República.
Quantos animais de companhia abandonados são abatidos por ano nos centros de recolha? Os números oficiais apontam para cerca de 12 mil. As associações de defesa dos animais dizem ser cerca de 100 mil e falam de uma “realidade assustadora” e “fora de controlo”. O fim do abate nos centros de recolha começa nesta terça-feira a ser debatido na Assembleia da República, por iniciativa do PAN.
Em Dezembro do ano passado, uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos (ILC) pelo fim dos canis de abate, apresentada pelo Partido Pessoas, Animais, Natureza (PAN), foi a debate na Assembleia da República. Acabou por baixar à especialidade sem votação e está, agora, na Comissão de Ambiente, Ordenamento do Território, Descentralização, Poder Local e Habitação.
A proposta de alteração à Lei de Protecção de Animais de 1995 e de diversos decretos de lei, cuja discussão pública começa nesta terça-feira no Parlamento, pretende proibir “o abate indiscriminado de animais pelas câmaras municipais”, instituir “uma política de controlo das populações de animais errantes” e estabelecer “condições adicionais para criação e venda de animais de companhia”.
O abate zero dos chamados animais de companhia já é prática corrente na Região Autónoma da Madeira e em algumas câmaras municipais, como Lisboa, Oeiras, Sintra ou Ponta Delgada, mas a iniciativa pretende alargar o fim do abate a nível nacional.
Segundo números recentemente divulgados pelo Ministério da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural, que tutela a Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV), no ano passado foram recolhidos pelos Centros de Recolha Oficiais, vulgarmente conhecidos por canis ou gatis municipais, 30.192 animais (23.706 cães e 6486 gatos). Destes, 2128 foram restituídos aos donos, 12.567 foram adoptados e 12.073 foram abatidos. Os restantes tiveram morte natural ou foram dados como desaparecidos.
“Atraso civilizacional”
Sandra Cardoso, presidente da associação SOS Animal, discorda dos números apresentados pelo Governo. Para ela, o número de abates de cães e gatos no país “ronda os 100 mil animais”.
“Os números oficiais são irreais, porque não têm em conta o facto de muitos distritos não terem centros de recolha e haver parcerias público-privadas e privadas para o abate de animais que não são controladas. Vive-se uma situação completamente fora de controlo”, diz Sandra Cardoso.
Já Maria do Céu Sampaio, presidente da Liga Portuguesa dos Direitos dos Animais (LPDA), diz que os números oficiais “não passam de uma estimativa muito rudimentar”. “Podem ser 20, 30 ou 50 mil, para mim até são mais, mas sem se saber quantos animais existem em Portugal esses números não valem nada.”
A presidente da LPDA “fala de uma realidade assustadora” e de “um sistema de captura/abate que não resolve o problema do abandono”: “É o sistema do deixa andar. É como se os animais fossem lixo.”
Por isso, defende que a primeira coisa a fazer é “um apanhado do número de animais que existem em Portugal, junta de freguesia a junta de freguesia”. Depois do censo, acrescenta, os animais seriam registados na junta e ser-lhes-ia colocado um chip de identificação. “Isto tudo gratuito. Era um investimento que se fazia, já que, com os animais registados, a tendência para o abandono diminuiria. E com menos abandono, menos capturas e menos abates.”
André Silva, deputado eleito pelo PAN, diz não ter dúvidas de que o número que mais se aproxima da realidade é o apontado pelas associações de defesa dos animais. “Qualquer pessoa que ande no terreno facilmente percebe que os números oficiais são absolutamente irreais”, afirma.
O deputado acrescenta que “basta fazer um apanhado real de um número de abates num determinado município” e extrapolá-lo a nível nacional para perceber que “os números oficiais estão completamente errados”. André Silva diz mesmo que “há municípios que nem revelam o número de abates”.
“A maioria dos municípios tem o abate com forma de controlo da natalidade animal e isso é inadmissível. É este atraso civilizacional que a proposta agora em discussão pública visa combater”, salienta o deputado do PAN.
O que fazer aos animais?
Seja qual for o número que mais se aproxima da realidade, há uma questão nova que se coloca caso seja aprovada a proposta para o fim do abate de animais: o que fazer aos animais?
André Silva defende que, se avançar uma campanha de esterilização para todos os animais recolhidos, se se regular de forma eficaz o controlo da criação de animais e se se fizer uma campanha de sensibilização junto dos cidadãos sobre esta matéria, “o número de animais recolhidos desce consideravelmente”.
O deputado advoga que os animais recolhidos e que deixem de ser abatidos possam ser “devolvidos à sua proveniência”, ou seja, às ruas. Diz mesmo que “já há exemplos de comunidades de gatos devolvidos às ruas e que estão perfeitamente integrados junto das populações”.
Aqui, a opinião das associações de defesa dos animais diverge da do PAN. Para a presidente da LPDA, antes de se avançar com a lei deviam ser criadas medidas “para que ela possa ser cumprida”.
“Estou farta de leis no papel que depois não são cumpridas”, desabafa. Por isso, Maria do Céu Sampaio defende que seja feita uma campanha nacional que passe por “identificar os animais existentes, esterilizar, ajudar quem não tem posse para cuidar dos animais” e então avançar com a lei, “agindo e multando de forma pesada quem não cumpra”.
75 mil assinaturas
“Achamos a iniciativa do PAN muito meritória, mas não posso deixar de a considerar populista, porque não apresenta soluções para onde vão os animais que deixam de ser abatidos”, diz, por sua vez, a presidente da SOS Animal.
Para Sandra Cardoso, era importante arranjar soluções para os animais que possam vir a deixar de ser abatidos antes de avançar com a proibição de abate nos centros de recolha. A presidente da associação fala na necessidade de fazer primeiro “uma grande campanha a nível de sensibilização para a esterilização e controlo de natalidade”, de “acções de formação e informação sobre tutela responsável” e de uma “avaliação rigorosa das estruturas que possam receber os animais”, e “só depois alterar a legislação sobre o abate”.
“O que se vai fazer a estes animais? Vão ficar nas ruas ou nos campos a passar fome? Manter um animal numa jaula por dez ou 20 anos é uma solução para o bem-estar dos animais?”, questiona.
Para Maria do Céu Sampaio, têm de ser feitas parcerias entre as câmaras municipais e a sociedade civil, nomeadamente as uniões zoófilas, para a esterilização dos animais. Defende ainda que as licenças pagas às juntas de freguesia para posse de um animal de companhia (15 a 20 euros/ano; as multas para quem não tem licença rondam os 500 euros) “sejam aplicadas nos animais”. “Para onde vai esse dinheiro? Vai para tudo menos para os animais, eu sei do que estou a falar.”
Esta Iniciativa Legislativa de Cidadãos que começa a ser debatida nesta terça-feira teve o apoio de cerca de 75 mil subscritores e é considerada pelo PAN uma das suas “principais acções de mobilização de cidadãos”. “É um marco na causa animal e vem propor medidas que há muito são exigidas por uma grande parte dos portugueses”, diz o movimento.
Nesta segunda-feira, o grupo de trabalho da Comissão de Ambiente, Ordenamento do Território, Descentralização, Poder Local e Habitação visitou alguns canis do país e nesta terça e quarta-feira serão ouvidas no Parlamento algumas entidades interessadas e subscritores da ILC. O grupo de trabalho que está com este projecto irá fazer a redacção final da proposta que volta a discussão na comissão. Quando se chegar a um consenso a proposta final é aprovada e irá novamente a plenário onde se dará a votação final global.